imagem de capa da página

PESQUISAR NESTE BLOG

sábado, 28 de dezembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

COMPATIBILIDADE
Nando da Costa Lima
O prefeito de Remosopólis se espreguiçou na poltrona, deu um peido, coçou o saco, cheirou os dedos, resmungou que tava carente de um bom banho e ordenou pro secretário:
— Pode começar, merda. Tô com pressa.
— Tá bom Dr., eu vou ler as fichas e o senhor escolhe o nome:
Zé Tenório. Mais de dez acusações de estelionato, facilidade pra fazer amizade com políticos de alto escalão. Tenório topa qualquer parada e é advogado formado não sei onde, só não tem a carteira da OAB.
Manoel Silva, brasileiro solteiro, atira com as duas mãos, mas prefere trabalhar com a peixeira lambedeira herdada de seu avô, que foi cangaceiro (a peixeira é usada só como talismã). Formado em administração, Manoel é especialista em extorsão em chantagem. Também gosta de cantar em karaoke música de Wando.
Rodozino Ferrão, brasileiro desquitado, começou sua brilhante carreira ainda jovem como dedo-duro, em 1964, e graças à sua habilidade ficou famoso no meio pelo requinte das torturas que usava. Apesar da idade avançada, Rodozino formou-se em psicologia e ainda continua na ativa. Freudiano ferrenho, o único defeito é a fama de tarado.
Jonas Bigode, brasileiro divorciado, conhecedor de todo o tipo de falsificação, tendo preferência especial pelo dólar. Jonas conseguiu formar-se em sociologia, e apesar de nunca ter exercido a profissão, fez fortuna contrabandeando cigarro do Paraguai para o Brasil, uma bela história! E nunca foi preso. Para todos os efeitos, é ficha limpa. Seu hobby é colecionar caçola: não pode ver um varal que ataca.
— Pronto Dr., já li todas as fichas, só falta o senhor escolher. A não ser que o senhor tenha algum nome.
— Escolher o quê, porra? Você tá endoidando? Eu não tenho nada haver com ocorrência policial, eu sou político, e não polícia. Isso é pro indulto de Natal? Tem até ladrão de caçola!
— Mas isso não é ocorrência policial não, seu prefeito, são os currículos dos candidatos do nosso partido, pedindo para serem avaliados pra representar a cidade no encontro com o presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara, que vai ocorrer na capital federal.
— Não é possível! Você deve estar brincando...  E a lei da Ficha Limpa? Eu sei que não precisa ser tão limpa, mas aí já tá demais. Esses parentes da minha mulher vão acabar me complicando.
— E são todos aparentados do senhor.
— Então não pode, aí eu vou praticar nepotismo.
— Não, são afilhados. Parentes da mulher do senhor. A primeira dama tem mais de 100 primos. Ô família grande! A maioria é ex-modelo...
— É por isso que não tem um que presta. Quer dizer que nosso partido só tem esse tipo de gente? Esses parentes de Eleutéria eu só deixo entrar lá em casa assobiando e batendo palma. Lá na prefeitura eu não deixo passar da cantina, só tem cobra criada.
— Não, seu prefeito. Tem pior. Esses são os que passaram na peneira. É claro que o apadrinhamento contou um pouco. Mas afinal de contas, o senhor e Dona Eleutéria são padrinhos de todo menino que nasceu aqui nos últimos 30 anos.
— É, o jeito vai ser escolher um merda desses. E porque não manda Zé Canário? O homem é poeta e gosta de passarinho.
  Se o senhor fizer isso, o pessoal dos Direitos Humanos vai cair em cima. Zé é criador de canário de briga, tem até uma rinha de galo.
— E o que tem isso? É um esporte como qualquer outro: briga de galo, vaquejada. Faz parte da nossa cultura. Pra se acabar com os galos de combate, só usando um método nazista: o extermínio. O ataque é instintivo, ninguém ensina nem tira, eles nascem combatendo.
— É esporte na cabeça do senhor que vive nos anos 40. Se o senhor fosse um homem antenado ia estar sabendo que isso é proibido e dá cadeia.
— Eu nem imaginava que uma briguinha de galo fosse problema pra político.
— Pois é problema, e um problema seríssimo. Se o senhor botar um criador de canário de briga pra ir numa reunião dos Direitos Humanos em Brasília, o senhor tá lascado!
— Já que você, que eu tenho como o meu melhor assessor, só faz botar defeito nas pessoas que eu indico, então fale o nome de um.
— É simples: Dona Marcolina, minha cara metade, que é diretora de colégio e psicóloga. Nesses cargos de confiança, tem que ter compatibilidade. Eu já disse e torno a repetir: se o senhor insistir com esse negócio de colocar um criador de canário de briga, e dono da rinha, pra chefiar a comitiva, o senhor não se elege mais nunca… Pode esquecer a carreira. É a mesma coisa que colocar um incendiário na presidência do IBAMA. Já basta os brigadistas que botam fogo nas matas e depois recebem pra apagar, segundo os jornais.
— Mas isso foi provado que é mentira. Só fizeram rapar a cabeça dos meninos, e eles são tão gente boa que nem reclamaram.
— Tem certeza?
            Em vez de responder, o velho político colocou a mão na testa e comentou com os olhos cheios d’água:
— É verdade! Esse negócio de ficha limpa tá acabando com a política tradicional, saudades dos “bons tempos”... Hoje não se pode nem dar uma carteirada. Até eu que sou chefe político, posso ser preso por qualquer besteira e vou ter que comer comida de presídio.
            O secretário, sensibilizado, quis amenizar:
— Não é assim também não, seu prefeito. Os políticos estão bem acima do resto da população, eles têm esse negócio de mil investigações para serem intimados. Pro cidadão comum, basta um soldado dar voz de prisão que vai preso como “meliante”. Aí lascou, é cadeia. E se quem efetuar a prisão for de cabo pra cima, o cidadão tá fudido mesmo, basta ter tomado uma… Ladrão de merenda escolar já tem outro trato, chega de Mercedes e o advogado vai buscar de BMW, é outro nível! E dona Eleutéria nunca iria deixar o senhor comer “boia” de cadeia.

sábado, 21 de dezembro de 2019

NNANDO DA COSTA LIMA - CONTO


DOLORES E O LOBISOMEM
Nando da Costa Lima

       Antes da televisão colocar o Brasil todo pra se comportar e vestir igual, as famílias eram fechadíssimas. O patriarca, por mais safado que fosse, mantinha o moral de pai de família exemplar, educava os filhos com a maior rigidez. As moças da época passavam aperto, “se perder” naquele tempo, era a pior das aventuras, eram expulsas de casa restando-lhes como opção de sobrevivência, a prostituição. Os sedutores, ou fugiam pra São Paulo ou morriam. Mas nem por isso as coisas deixavam de acontecer, e pra que não houvesse expulsão de casa, nem morte dos Don Juan, eram inventadas as desculpas mais descaradas. Na maioria dos povoados, as moças quando pulavam a cerca, colocavam a culpa no tarado, isto livrava a cara de muita donzela assanhada, era só falar que o autor da proeza tinha sido um tarado que a família além de ficar com pena, mandava logo a moça ir estudar no Rio, lá o povo era mais aberto. Aqui em Conquista a culpa sempre era do tarado que se escondia no matinho da Escola Normal. Este, por sinal, nunca foi encontrado.
       Esta história do tarado só colava num lugar de movimento, em Pedra Cinza, uma cidade pequena e de gente ordeira, não dava pra jogar a culpa no tarado, lá só tinha homem respeitador. Para as moças, aquilo era péssimo, era tão ruim, que elas só casavam virgens. Isso até aparecer Joana, foi ela a primeira a dar o golpe. Engraçou-se com Pedro do açougue, e acabaram indo ver o por do sol no muro do açude, gostaram tanto, que ficaram pra ver o sol nascer. No outro dia chegou em casa aos prantos, chorou o dia todo, o painotou que tinha alguma coisa errada e mandou a mulher investigar. Foi aí que começou a história do lobisomem, Joana, acostumada a escutar caso de assombração desde criança, quando se viu perdida no interrogatório da mãe, largou: “foi um lobisomem, me pegou lá no muro do açude”. A mãe tomou um susto, mas mesmo assustada continuou: “Como lobisomem? Você não tem um arranhão. Só chupão no pescoço, este lobisomem era banguela?”. Mas Joana bateu pé firme e contou todos os detalhes para a mãe, a velha, como profunda conhecedora de aparição, matou logo a charada: era um lobisomem tarado, só pensava em sexo. Desse dia em diante, o lobisomem todo mês dava notícia. Já tinha mais de 15 moças morando no Rio. E ele era eclético, pegava qualquer uma, independente de raça, cor, religião ou idade.
       Quando Dolores Armengue ficou sabendo do lobisomem insaciável, não perdeu tempo; mudou-se pra Pedra Cinza. Ela era uma das pessoas mais desprovidas de beleza que já pisou na terra; ninguém encarava. Já tinha rodado o país inteiro atrás de um tarado; era só saber que tinha algum atacando, que ela fazia de tudo pra ser uma das vítimas, só que ninguém encarava. Já era conhecida por “Dolores espanta tarado”; era tão feia, que só dava pra localizar o rosto, graças aos óculos fundo de garrafa. Mas dessa vez, tudo indicava que seu sonho viraria realidade; 45 anos de virgindade, botava qualquer uma pra babar na fronha. Quando soube que o lugar preferido do lobisomem era o murinho do açude, armou barraca lá mesmo. Os dias iam passando, e nada de lobisomem aparecer, ela já tava pra endoidar. Numa noite de lua, aconteceu; o povo da cidade só escutava os gritos e os gemidos, parecia que daquela vez tinha dado certo, tudo indicava que ela havia agarrado o lobisomem.  Dolores foi embora no outro dia. Quase ninguém a viu partir, mas os poucos que viram, notaram que apesar de toda arranhada e com marcas de dente pelo corpo todo, seu jeito era de pura satisfação; tava na cara que tinha conseguido o que mais queria.
      O povo da cidade que ficou divido: os mais velhos, até hoje acreditam que ela manteve relações com o lobisomem. Os mais novos, que inventaram a história, ficaram sem entender, nunca iriam imaginar que aquilo se tornaria realidade. Mas quem não entendeu nada, e até hoje não pode ver uma saia que sai correndo, além de nunca mais caçar pros lados do açude, foi o cachorro perdigueiro de seu Pedro, aquela tarada quase mata o bichinho, perdeu até o faro...

sábado, 14 de dezembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

Tocaiaram até o destino

Nando da Costa Lima
— Tu viu, cumade Deuzita?
— Vi o quê? Tá vendo assombração de dia?
— Não, é que eu vi o cauã cantando ainda agora, no pé da gameleira que secou depois que caiu um raio em cima… Passou por todas as três árvores, mas só cantou na gameleira seca. Isso é sinal ruim, tô toda arrepiada. Vou pegar um galho de arruda pra colocar na orelha. Sangue de Jesus tem poder, vamos rezar 13 credos de trás pra frente ajoelhadas numa mão de pilão.
— Pra quê essa mão de pilão, comadre?
— Tem que ter sacrifício. Dá força à oração!
— Larga de besteira, cumade. Deus não gosta dessas presepadas. Vamos orar em silêncio. Quem pensa no mal, atrai o pior.
Os jagunços só esperaram a Semana Santa acabar… Estavam em três, um trio que já tinha dado fim em tanta gente que dava pra encher um cemitério. Esse pessoal tinha por ofício eliminar o próximo, era um meio de vida como outro qualquer (segundo eles). O mais velho deles já não tinha mais onde colocar marca no cabo da “papo amarelo”: cada vida abatida era uma marca. Ele era um cabra de pouca conversa. Os outros dois eram bem mais novos, estavam naquela empreitada por já terem provado a competência em outros serviços. Eram ótimos atiradores. Era uma família! Eles estavam de tocaia desde cedo: o velho atrás de uma moita no lado direito; os outros ficaram do lado esquerdo, de frente pra curva. Não tinham como errar, era só ter paciência. Eles fizeram até uma aposta pra ver quem pegava o primeiro. Coisa de pistoleiro! Tinha que ser de “bate pronto”, a vítima tinha que cair da montaria já sem vida. Isso era como uma marca de um bom matador.
Foi na primeira semana depois da sexta-feira da paixão, o povoado fazia gosto… Tinha escola, água potável, correio, era uma belezura! Não tinha um menino fora da escola, e o coronel Napoleão Ferraz incentivava o povo a se instruir. Ele prezava o trabalho comunitário e criou cooperativas pra incentivar os pequenos proprietários. Um sujeito progressista e empreendedor que achava que só se crescia se o povo crescesse junto. E aí surgiram casas de farinha, criatórios de gado e de caprinos, tudo tendo o coronel como principal associado. Para um povoado baiano ter este nível de desenvolvimento, só com um dirigente que apostasse no trabalho coletivo. E foi com estes benefícios sociais, incluindo o trabalhador rural no mercado como cidadão, coisas que os coronéis da época jamais incentivariam. O coronel Napoleão Ferraz, naquela época, sabia que a educação era a base de tudo. O povoado já respirava o ar do progresso, e ele, sentindo isso, passou a incentivar os festejos populares, sabia que aquilo era cultura. O coronel era respeitado não só em Belo Campo, e conseguiu esse respeito sem o uso de armas, tão natural pra época. Os coronéis mais respeitados eram os que tinham maior poder de fogo, mas o coronel Napoleão desprezava isso. Sua visão humanista não permitia manter um bando de jagunços.
O jeito do Coronel de Belo Campo conduzir as coisas já estava incomodando os outros coronéis das redondezas. Não podiam deixar que ele dominasse as massas apenas com ideias práticas, aquilo era um perigo! Querer igualar as pessoas, para os coronéis, não era coisa de gente. E a cada investida em benefício do povo, ele atacava os pontos principais: fome, educação, moradia, etc. Quanto mais aumentava a sua popularidade, mais os coronéis ficavam irritados. Estavam pra estourar… Em todo canto só se falava do Coronel de Belo Campo, até na capital do estado! E quando Napoleão foi condecorado pelo governo federal como chefe dos coronéis do Sertão da Ressaca, foi o estopim. O governo, sem querer, jogou pedra no vespeiro que ficava na passagem do coronel. Se fosse para eles terem “chefe” algum dia, eles mesmos escolheriam. Nunca iriam admitir uma ordem que não fosse vinda do governador. Abaixo do governo do estado, só eles! Jamais aceitariam ordens do Coronel de Belo Campo, mesmo este sendo contemplado pelo governo federal. Era a inveja falando alto.
Dona Edeuzita tava catando andu na porta de casa quando apareceu um sujeito e puxou conversa:
— Boa tarde, dona. A senhora mora aqui há muito tempo?
— Não, senhor. Vai fazer um ano que estou aqui, vim quando soube do Coronel do Povo, o homem que criou este povoado e tudo de bom que tem nele.
— Esse homem então deve ser muito respeitado. Ele já é velho?
— Não, o coronel Napoleão ainda tá novo, o bigodão ainda não tem um fio de cabelo branco. É um anjo de Deus.
— Mas só por isso a senhora acha que o homem vai virar santo?
— O senhor devia calar a boca e escutar sem interromper. Deixa eu contar só um pedaço da vida dele que o senhor vai tirar o chapéu e me dar razão. Este homem fez de tudo… escola, cemitério, correio, estrada pra Conquista. Pro senhor ter uma ideia, aqui ninguém mora de aluguel. Tudo planejado por ele.
— Quer dizer então que esse homem, do nada, fez uma cidade com gente e tudo? Tem polícia também?
— Ô, menino. Eu tô achando que você tá mangando de mim. Eu tô fazendo um favor e você ainda vem com essas gracinhas. É melhor parar. Deixa eu terminar de catar meu andu que a freguesia tá chegando.
— Calma, Dona Edeuzita. Me desculpe. É que fui criado solto no mundo e às vezes me comporto mal, mas não é por vontade minha. A senhora, que é uma mulher mais escolada, vai saber perdoar este peão analfabeto que só está de passagem por esse lugar bonito. Por favor, termine de contar a história do coroné.
— O coroné fez tudo que prometeu. Tudo no povoado está correndo bem, a alegria se nota na cara dos moradores, tá todo mundo alegre e confiante. Mas agora fui eu quem ficou curiosa: tem mais de uma hora que o senhor tá aqui e nem perguntou o preço do andu… Só fez perguntas. Eu vou logo avisando, o povo daqui é ordeiro, mas é brabo. Se o senhor estiver mal intencionado, é melhor pegar a estrada. Quem muito pergunta é porque está querendo alguma coisa.
— Não é nada disso, eu sou um simples viajante. Meu tempo aqui é curto, já estou com o pé na estrada. Depois de hoje, a senhora nunca mais vai me ver.
Dona Edeuzita ficou encafifada com aquela prosa o dia todo, chegou a ficar arrepiada. Aquele homem, apesar de simpático, tinha jeito de quem não valia nada. Ficou ainda mais impressionada depois que soube da notícia, ainda comentou com Salú do Mingau:
— Tem uns três dias que passou um homem na frente lá de casa que quis saber tudo sobre o coronel Napoleão. Eu pensei que fosse gente da capital… Agora sei que não era. Aquele perguntador safado com os “ói” de bode na taca deve ter sido o pé de tôco que matou o coroné e o irmão. Miserável, um homem até bonito. Ainda bem que eu não dei ousadia… Agora deve tá longe.
E em seguida falou: “Cala-te boca”.
Do lado esquerdo da estrada, um dos cabras aprumou a mira no sujeito que vinha do lado direito e desceu o dedo. Deu cinco tiros certeiros, queria impressionar o velho jagunço. Este, que estava mais distante, precisou dar só dois tiros pra derrubar o irmão do coroné. Nem reclamou com o novato por ter disparado tanto tiro, deixou pra lá. O serviço tinha sido limpo: no meio de tanta gente, só pegaram os alvos! Ademais, quando tinha a idade dele já havia descarregado muita repetição em encomenda, fazia até aposta pra ver quem furava mais o defunto. Chegou até a puxar conversa, o que não era normal… Ele perguntou pro rapaz que disparou os cinco tiros como é que ele sabia que tinha atirado no coroné. O rapaz falou que uns dias antes da tocaia, ele foi no povoado e conversou com uma velha que vendia andu. Foi ela quem falou que o coronel tinha o bigode grosso…
E desceram em silêncio, na direção do Verruga.

sábado, 7 de dezembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

No Cine Madrigal

Nando da Costa Lima
Fica pra lá de onde se possa imaginar, é longe…, muito longe! É saudade…
Eu estava matutando no passado de minha Conquista e acabei descobrindo que nós  nunca tivemos um lugar fixo para ter saudade, cada geração teve seu ponto de encontro, e isto vem de muito tempo, desde o Gato Preto até a Praça do Gil. Teve um tempo que a grande onda da rapaziada da terra dos mongoiós era ficar sentado na curvinha do amor, ali aconteceram grandes flertes (paqueras). Todo “playboy” que se prezasse tinha que ficar pelo menos uma hora por dia plantado na curvinha do amor que nada mais era que uma das esquinas do Jardim das Borboletas (Hoje Tancredo Neves), onde Aurelino vendia o seu famoso acarajé. Este ponto teve vida curta!..  Outro lugar que marcou época foi a alameda Ramiro Santos, não sei porque o pessoal achou de fazer dali uma passarela, era de segunda a sexta depois das seis horas. Muito sapato “Motinha” foi gasto subindo e descendo aquela alameda como se estivesse procurando alguma coisa…, o movimento acabava rápido como começava…, talvez até querendo alertar que a vida era bem mais que aquilo… Muito tempo depois o pessoal começou a frequentar a Praça do Gil, eu até falei na época que a pracinha lembrava uma adolescente provinciana pronta a se soltar ao primeiro acorde de um trio elétrico. Não sei porque a pracinha se apagou de uma hora para outra. Talvez devido ao crescimento da cidade.
 Mas o que marcou mesmo toda minha geração foi a primeira sessão do Cine Madrigal. Segundo o Aurélio, Madrigal quer dizer “Galanteio”, e apesar de quase ninguém saber disso, o cinema era usado como um verdadeiro salão de galanteio, mas tudo na maior pureza do mundo! A gente passava a semana toda ensaiando a possível cantada que ia dar na “menina” na primeira sessão do Madrigal, era concorridíssima! O pessoal de sapato novo fazia questão de chegar mais cedo para sentar na primeira fileira e exibir o “cavalo de aço” com mais “naturalidade”. A mistura de perfumes impregnava o salão, ficava um cheiro enjoativo…, mas aos olhos do adolescente magrelo e desengonçado, tudo era lindo…! Principalmente naquele domingo que ele, depois de muito tempo criando coragem, conseguiu marcar um encontro com a menina que há meses vinha lhe tirando o sossego, estava nervosíssimo…, foi o primeiro a chegar, sentou-se na primeira fila e ficou esperando com o coração na mão…, ela chegou atrasada, o filme já tinha começado, imaginei que fosse por timidez!  Entrou tateando segurando a mão de uma amiga, por coincidência sentou-se ao meu lado, meu coração quase saiu pela boca, tava mais emocionado que vereador quando recebe abraço de governador. Pensando que ela estava me enxergando quase me manifestei…, só não o fiz porque antes da minha tentativa ela cutucou a amiga e falou confidencialmente: “Tomara que aquele magrelo cabeçudo não me encontre, se ele sentar perto de mim eu vou embora”. Saí despistando pra não ser notado, fiquei tão traumatizado que só fui arranjar uma namorada dois anos depois, e por obra do destino foi no Cine Madrigal…
Em memória do Sr. Nivaldo Araújo

sábado, 30 de novembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

Eles cortaram volta

Nando da Costa Lima
A Coluna Prestes passou pela Bahia nos anos 1925/26. Mesmo tendo perdido prestígio com o tempo, ainda eram vistos por muitos como heróis. Também surgiram várias lendas depreciando ou elogiando o movimento militar surgido em 1925. O levante só durou dois anos, e a Coluna percorreu mais de vinte mil quilômetros. Quando a situação foi contornada, os militares voltaram pros quartéis, mas ficaram os bandos de civis armados vagando pelos sertões dos conturbados anos 20. Muita coisa errada aconteceu por causa disso. A revolta foi uma insatisfação militar contra o governo federal, nessa época Prestes não tinha ligação nenhuma com o comunismo…
O encontro estava tenso. Os homens de bem da cidade estavam reunidos para discutir o que fazer caso os revoltosos passassem pela cidade. Era a terceira reunião dos coronéis em menos de 10 dias. Não se chegava a um acordo, não sabiam se iriam receber a Coluna como amigos ou inimigos. Tinham que arranjar um jeito de respeitar o governo, que eram contra aquela “marcha de gente sem o que fazer”. Mas também sabiam que se os revoltosos entrassem na cidade, iriam saquear e soltar os presos. Isso sem falar nas mulheres. Se eles tentassem, o jeito seria recebê-los à bala. Sò que os revoltosos eram um número bem maior, seria uma carnificina. E os coronéis do Planalto estavam bem armados.
As senhoras dos coronéis já tinham uma solução para o problema: elas haviam decidido que colocariam olheiros nos pontos mais altos da serra e nas principais entradas da cidade. Caso o vigilantes vissem ou ouvissem alguma coisa, desceriam e avisariam pros coronéis, que subiriam em comitiva e fora da cidade negociariam uma solução. Perguntariam aos chefes da Coluna quais eram as suas necessidades e se prontificariam a fornecer o que fosse necessário sem que houvesse hostilidade com o povo da cidade. Quando elas mandaram os maridos levarem essa ideia pra última reunião, todos concordaram. Deve ter sido Nossa Senhora das Vitórias que clareou. Os coronéis começaram a pôr o plano em ação de imediato: escolheram os rapazes mais fortes da cidade, os atletas da época, e os distribuíram nos pontos mais altos da serra. Cada um ficaria com uma montaria arriada, para não perderem tempo caso ocorresse alguma suspeita. Se acontecesse, a comitiva subiria para a serra, já estava tudo acertado entre os coronéis. Uns dariam dinheiro, outros gado, outros mantimentos. Fariam uma proposta bem chamativa, não queriam confusão, já que um bando de homens armados passando por dentro de uma cidade ordeira não ia terminar bem. O dono do bar exagerou um pouco quando disse que seria um massacre, mas ele tinha suas razões. Tinha uma família grande e bonita pensou até em mandá-los pro Simão, mas não adiantava: ninguém sabia por onde os revoltosos viriam. Ele estava tão preocupado que prometeu um barril de 50 litros de pinga e um saco da legítima Jurubeba Leão do Norte (nessa época era vendida em sacos de estopa, as 36 garrafas eram revestidas com palha). Aquela atitude causou admiração, Seu Duda não era de abrir a mão por nada, deve ter sido o medo de algum revoltoso se engraçar com Marivone. É nisso que dá casar com mulher bonita! Os coronéis escolheram Ivo pra ficar no Cruzeiro, era a passagem mais provável. Se os revoltosos viessem, com certeza seria por ali. Ivo era um atleta natural, praquela época um homem com 1,90m e forte se destacava em qualquer canto. Além disso, ele jogava futebol, praticava boxe, nadava… Era o homem certo. Daí o motivo de os coronéis o colocarem no ponto mais estratégico da Serra do Periperi. Ele era um grande corredor e tinha muita resistência. Quis até dispensar a montaria, mas os coronéis fizeram questão de deixar uma bom cavalo à disposição do olheiro atleta. Era uma questão de sobrevivência da
cidade, ninguém podia vacilar! As mulheres pediram aos coronéis para colocarem um jagunço no lugar de Ivo, ele era o único professor de educação física da cidade. Mas os coronéis sabiam que um jagunço não seria de total confiança, afinal, ele iria se encontrar com gente como ele, seria fácil ele se identificar com a Coluna. Tinha que ser Ivo, um jovem em que todos confiavam. Ele daria conta do recado. Dona Rosálio tava estranhando. Se a Coluna não tinha passado nem em Jequié nem em Poções, como é que estariam chegando aqui? Isso devia ser conversa fiada. Dona Turmalinda completou: “Pro lado do Verruga, também ninguém ouviu falar em revoltoso”. Ivo estava cochilando no ponto de vigília que lhe deixaram com um binóculo e uma montaria pra ele dar notícia de qualquer movimento suspeito… Mas o cochilo de Ivo tava pesado e ele deve ter sonhado com uma invasão dos revoltosos. Acordou com um grito agudo: “Te apruma, revoltoso”. Ivo nem olhou pra trás, nem se lembrou do cavalo, desceu a ladeira numa carreira alucinada. Por onde passava, arrebatava dois ou três curiosos. Quando chegou na casa do coronel que chefiava a comitiva, apontou pra serra e gritou: “Revoltosos!”. O coronel, mesmo desconfiado, escalou o resto da comitiva e subiu a serra a galope. Ivo já tinha cumprido seu papel, ficou sendo abanado e tomando garapa de cana pra recuperar. Já era um herói!
Quando os coronéis chegaram no local indicado pelo atleta, deram de cara com o tropeiro Dão Bilhete vindo com sua tropa de quarenta burros carregados de artigos oriundos da capital pra vender em Conquista na última feira antes do Natal. Os coronéis perguntaram pra ele se tinha visto algum movimento de revoltosos pelo caminho da capital pra cá. Ele relatou que a Coluna foi pro lado de Condeúba e Mortugaba, mas que agora já estava longe, e brincou: “O único rebelde que tem aqui é o meu burro, que batizei de Revoltoso”. Dão ainda contou que a Coluna pegou o povo de Condeúba de surpresa, mas em Mortugaba a coisa foi diferente, o pessoal já esperava e deu as caras. A briga foi feia.
A comitiva desceu a serra bem mais calma só de saber que a Coluna já estava longe. Fizeram uma reunião extraordinária na parte de cima da igreja e comunicaram à população que os revoltosos cortaram volta, passaram por Condeúba. Alguém devia ter falado pra eles que a coisa aqui era diferente…Tá pensando o quê?! Livraram a cara do atleta herói, nem contaram que a carreira que ele deu do Cruzeiro até o Centro foi por conta do tropeiro Dão Biilhete ter chamado o burro que lhe servia de montaria no grito: “Te apruma, Revoltoso!”…
Ivo fez uma compra vultosa na mão de Dão Bilhete, deixou até uma gorjeta gorda. Mas Seu Dão já tinha garantido que ninguém ia ficar sabendo da ocorrência no alto da Serra do Periperi. Até o nome do burro ele já tinha mudado pra Bentivi.

sábado, 23 de novembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

Diplomacia

Nando da Costa Lima
Panela de barro, fogão a lenha, cortado de maxixe com carne seca… O cheiro da comida de Alvina tomou conta da Rua Grande. Era dia de feira, tinha gente de todo o canto, o barracão tava que não cabia mais ninguém. Tinha bêbado, tinha pedinte, tinha de tudo que uma feira exige. Até ladrão! Um vendedor de passarinho tava querendo que um soldado comprasse uma araponga já mansa. Segundo ele, o negócio não deu certo: o soldado estava bêbado e quebrou a gaiola toda, o passarinho aproveitou para ser livre novamente e o vendedor foi recolhido por afronta a autoridade. Foi engaiolado no lugar do passarinho. Dona Nita do arroz-doce gostou de ver, “É praquele amarelo parar de armar arapuca pra pegar os bichinhos…”. Por que, em vez disso, ele não catava lenha? Tinha quem comprasse! Mas não, o sacana do Bertulino só queria saber de passarinho. Era uma profissão como outra qualquer, só que quem a exercia ficava mal visto, era coisa de gente preguiçosa. E quanto mais quando se tratava dos Araponga, o pai de Bertulino ficou famoso depois que ensinou um papagaio a falar “Aldagisa filha da puta” e deu de presente pro vizinho da avó. A velha não podia mexer na cama que o sacana do louro começava a assoviar e xingar. O Dr. falou que Dona Aldagisa infartou de tanto passar raiva. Coitada. Mas Bertulino não abria mão da profissão, ele vinha de uma linhagem de passarinheiros que há muito tempo comercializava arapongas, tanto é que todos da família assinavam o nome da ave como sobrenome. Bertulino Araponga era da quarta geração. Mas era comum os feirantes adotarem o nome do produto que vendiam: era João do Fumo, Zé do Bode, Maria do Andú… O pirão de rabada da barraca de Zenilda era famoso, vinha gente de fora só pra provar. Todo mundo sabia quem era Zenilda do pirão.
Foi numa barraca que só vendia fumo de rolo e pinga (E é claro que rolava um joguinho apostado). Foi ali que um jogador, já meio tomado, começou a falar sobre uma surra que ele tinha dado num professor a mando de seus próprios aliados. A história contradizia toda a versão conhecida pelos demais. Apesar de terem certeza de que era mentira, eles insistiram que Emergildo de Duda contasse a versão da surra que um professor e poeta tinha tomado no início do século, o que atiçou a curiosidade do pessoal. A surpresa foi quando ele disse que foram os próprios aliados: todo mundo sabia que quem encomendou a surra foi o outro lado. É que se fosse pra decidir só com o pessoal daqui, o lado do juiz ganhava. Eles tinham que convencer o coronel em Macarani, pra entrar pro lado deles. Mas a disputa era entre parentes, e este não queria se meter na briga dos primos. A forma achada foi essa: o coronel tinha sido aluno do professor poeta e tinha um respeito muito grande pelo mestre. Era claro que quando soubesse que o seu professor tinha sido espancado por um dos lados ele tomaria partido do pessoal que tinha o professor como um de seus líderes. Essa decisão foi fundamental.
— Não se sabe quem, mas eu garanto que quem contratou era gente do mesmo lado. Eu sei porque eu ajudei a dar a surra, foi fácil… O poeta nem pôde reagir. Seu amigo, então, nem teve tempo de descer do cavalo. Morreu lá mesmo.
Aí uma senhora conhecida do poeta que estava passando pelo local, ao escutar a conversa, retrucou:
— Agora que o povo tá em paz, já nem se fala mais em briga, você vem com essa mentira, seu cachaceiro. Daqui a pouco você vai falar que foi papai que mandou bater no professor Manoel. Cê tá lembrando da tropa que sumiu com os animais arreados? Imagina você que só anda só, é tão miserável que nem amigo tem.
— Se a senhora tá me ameaçando, é melhor mandar seu marido tomar frente na briga. Meu negócio com mulher é só na cama. E tem que ser bonita!
— Não foi isso que Marluce falou. Ela tá decepcionada. Foi enganada. Viu alguém te chamando de jumento e pensou que era fazendo alusão. Casou com você e até hoje reclama da falta de atividade sua. Foi propaganda enganosa.
— A senhora agora quer se meter até na minha vida particular. Também, Marluce fica dando ousadia pra qualquer uma.
— Qualquer uma é a senhora sua mãe. E isso nem é segredo aqui, seu linguarudo. Quer mudar a história da cidade? Filho de jagunço, neto de jagunço… Quem é que vai acreditar? Além do mais, tem muita gente que se ficar sabendo dessa sua mentira vai fazer fila pra te mandar pro inferno na hora. É melhor você calar essa boca antes que eu costure com agulha de sapateiro.
— No dia em que uma mulher me fizer calar a boca, eu mudo de cidade ou visto uma saia.
— Então acho bom cê picar o burro antes da feira acabar. Se ficar, eu não me responsabilizo. Palavra de Belinha, e eu não tô aqui pra ver homem de saia.
          Quando Emergildo escutou o nome “Belinha”, gelou da cabeça ao dedão do pé. Só deu tempo de ajoelhar, e gaguejando tentou se explicar:
— Perdão, Dona Belinha. Eu inventei essa história pra ver se causava alguma sensação, a feira tava muito sem graça, não tinha um fuxico rodando… Foi por isso que eu fiz essa besteira. Pelo amor de Nossa Senhora, esquece isso
— Mas agora você já falou. Então é bom picar a mula, ainda dá tempo, a feira mal começou.
— Tá bom, Dona Belinha. Meu nome é Emergildo, eu sou filho de Dona Duda, ela mora na passagem pra fazenda da senhora. Fale pra mãe que eu fui em direção à guarita de Minas e que de lá vou pra Sompaulo, não tem tempo pra voltar… Sua bênção, Dona Belinha.
— Deus te abençoe. Cria juízo e esquece de voltar. Pode deixar que eu falo pra sua mãe que foi melhor você viajar do que ficar plantado aqui.
          E graças à diplomacia, correu tudo bem na feira da Rua Grande… Só Bertulino Araponga foi preso por se desentender com uma autoridade.

sábado, 9 de novembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

CUSTÓDIO PÉ DE VALSA 
Nando da Costa Lima
Custódio era mais arrogante do que ministro do STF, mas quando bebia, perdia a noção de tudo... Ele parou o carro em frente a uma cancela, estava completamente bêbado, tava de bater de lenço... Tentou abrir, mas viu que estava com um cadeado enorme. Foi o jeito pular, mesmo estando vesgo de pinga. Conseguiu cair do outro lado e do chão sentiu que vinha alguém ao seu encontro. Era um senhor de uns 70 anos, com barba e cabelos grisalhos. Ele acenou pro biriteiro e, apontando pro casarão, o convidou para tomar um café. Custódio ficou de pé, sacudiu a poeira, agradeceu o convite e acompanhou o velho até a residência. Lá a casa parecia que estava em festa, tinha muita gente! Todos foram muito simpáticos, parecia que todos eram parentes dele. Pela cordialidade, Custódio se sentiu em casa, só tinha gente boa! Um dos presentes notou que ele estava enrolando com aquela xícara de café com leite e ofereceu uma pinga. Ele aceitou sorrindo, viu que ali era o lugar certo pra terminar aquela farra. Ficou tão alegre que esqueceu do tempo, nem pensava em sair dali, tava muito satisfeito. Dançou, comeu e, principalmente, bebeu. Conversou sobre vários temas com os presentes, só não ficou mais à vontade porque notou que só quem não estava armado eram os meninos. Mas pelo tratamento a ele dispensado, pegava até mal perguntar o motivo de tantas armas. Parecia que iam pra guerra! O pessoal lhe tratou tão bem que ele não tinha planos de ir embora tão cedo. Até uma possível namorada ele já tinha arranjado, era uma questão de tempo. Antes da meia-noite ele já estava tropeçando no povo, mas tinha certeza de que ia se dar bem com aquela morena. A dona da casa entrou na sala e disse em voz alta que o jantar estava sendo servido. Um verdadeiro banquete! Tinha de tudo: peru, pato, galinha, bode e, para a alegria de Custódio, muita bebida. A comilança correu muito bem, teve até discurso saudando o visitante. E ele, emocionado, retribuiu elogiando a todos os presentes. Falou que nunca tinha sido tão bem tratado em sua vida, nem na casa de parentes ele tinha sido tão mimado, toda hora passava alguém oferecendo alguma coisa. Tudo ficou ainda melhor quando um dos convidados apareceu com uma sanfona e sentou o dedo pra dentro, tocou mais de vinte músicas seguidas. E Custódio, a cada parte, mudava de par. Era um exímio dançarino, até a matriarca fez questão de dançar uma valsa com o galanteador que surgiu do nada. Ele começou a imaginar por que não tinha conhecido aquele pessoal simpático há mais tempo, eram praticamente vizinhos. De Conquista pra lá era um pulo, não entendia o porquê de nunca ter encontrado com aquelas pessoas. Só podia ser coisa dos primos invejosos, ficaram com receio de ele ficar mais amigo do casarão que deles. Isto o deixou tão curioso que começou a interrogar a todos disfarçadamente... Mas quanto mais indagava, mais o pessoal o deixava em suspense. Ninguém tinha ouvido falar dos seus primos ou dos vizinhos. Ninguém dava uma resposta que clareasse suas dúvidas. Como cavalo dado não se olha os dentes, ele sossegou e continuou na farra, que estava muito boa. Quando deu meia-noite, o velho que, segundo ele, era o dono da casa, chamou Custódio num canto reservado e falou que tinha gostado muito de sua companhia, mas que infelizmente já estava na hora de ele ir embora, tava na hora de dormir. Quando o velho acabou de falar, começou a trovejar forte, e em questão de minutos caiu um temporal com muito vento. Pareceu que as janelas do casarão trancaram de vez, era água e vento como há muito tempo não se via. Os raios tornavam o temporal ainda mais ameaçador, e Custódio, apesar de ter pavor de raio, até que gostou. O dono da casa teria que hospedá-lo de qualquer jeito, nenhum ser humano deixaria um visitante sair num temporal daqueles, seria maldade! E era mesmo: deixar um bebum sair dirigindo debaixo daquele aguaceiro era sacanagem das grossas. Mesmo assim, o dono da casa tornou a chama-lo e quase que insistiu que ele fosse embora. Quando ele viu que o povo tava falando sério, ficou receoso. Mesmo assim, insistiu, pedindo a uma das moças pra convencer os velhos a deixarem ele pernoitar no casarão. Mas não teve acordo, o povo tinha falado sério, e ele sem entender nada insistiu mais uma vez, argumentou que não ia incomodar, era só abrir a cancela, colocar o carro pra dentro e passar a noite. Assim que a chuva passasse ele iria embora. Insistiu tanto que foi o jeito abrirem a cancela e o deixarem dormir no automóvel. Antes de encostar o carro em frente ao casarão, Custódio já estava cochilando, mas fez questão de descer e se despedir de todos. Depois de muitos agradecimentos e apertos de mão, voltou para o carro e dormiu. E como dormiu... Assustou com seus pais batendo no vidro do carro pra lhe acordar, a mãe estava desesperada. E quando ele baixou o vidro, ainda meio tonto, ela foi logo lendo o beabá pro bebum: — Você tá ficando doido, meu filho? Eu fiquei sabendo lá em Conquista que você ficou um dia e uma noite dançando e conversando sozinho aqui nesse cemitério. Não tem respeito nem com os mortos! Ainda bem que o povo pensou que você fosse doido e não lhe quebrou na porrada... Já imaginou?! Estacionar o carro no meio de um cemitério secular e passar a noite dançando e falando sozinho. Toma uma tenência na vida! E como é que você abriu aquele cadeado enferrujado? Depois disso, Custódio nunca mais foi o mesmo. É que de tanto ele insistir com a história dum casarão que não existia há mais de um século, os parentes acabaram lhe internando em Barbacena, onde permaneceu por um ano e, toda vez que sumia, a família já sabia que iriam encontra-lo em algum cemitério, dançando e conversando sozinho. Custódio Pé de Valsa ficou sendo o doido oficial da cidade até sua morte.

sábado, 2 de novembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO HISTÓRICO

A TRAGÉDIA DO TAMANDUÁ (1895)
     Nando da Costa Lima
Foi tiro pra todo lado, o pipocar das balas chegava a ferir a consciência de quem estava a léguas de distância...
       Foi num tempo onde os coronéis usavam os clavinotes para a lei conforme suas ideologias, um mal necessário para as comunidades perdidas nos sertões, sem eles a lei do mais forte prevaleceria de maneira mais acentuada. Com o poder concentrado nas mãos tornavam-se verdadeiros reis medievais e nada ocorria nas suas regiões de origem sem suas aprovações, isto é, quase nada. Quando a briga era entre famílias que os apoiavam eles simplesmente assistiam, aí a razão não tinha lado...
        O desentendimento começou depois que uma vaca do coronel foi encontrada morta, na fazenda Pau de Espinho que pertencia à viúva Lourença de Oliveira Freitas. Afonso Lopes acusou os filhos da viúva de terem matado o animal. Após essa desavença houve uma briga delescom o genro do Coronel, que saiu em desvantagem. Isto deu fim a uma velha amizade, que se não era das mais amáveis também não era hostil. Aconteceu em 1893 na região de Belo Campo... Quando Afonso Lopes brigou com Sérgio, ele ainda não era autoridade no cargo que correspondia ao de subdelegado. Mas quando assumiu não vacilou em usar da autoridade para tirar a limpo suas diferenças com os filhos da viúva, foi como autoridade que tirou a vida dos dois irmãos na presença da mãe e esta sua atitude gerou uma das mais sanguinárias vinganças de família da história do Brasil.
       Dona Lourença amarrou os corpos dos filhos nos dorsos de dois animais e os conduziu por mais de dez léguas, até a entrada do cemitério de Conquista. Lá pronunciou a frase que ecoou por várias décadas na região: “Vocês mataram meus filhos, se quiserem enterrem senão comam”.
       Calixto, um dos filhos da viúva, não disse nada quando viu os irmãos mortos, se retirou do povoado. Pouco tempo depois de sua partida surgiu o boato que ele estava reunindo homens para vingar os irmãos. A família do Coronel Domingos começou a se precaver esperando o revide, foi mais de um ano de tensão... Que Calixto vinha tentar se vingar o Coronel tinha certeza, só não imaginava que ele viria com todo aquele poder de fogo, seus homens vieram dispersados. Calixto chegou às terras do Coronel na madrugada, pela manhã o casarão da fazenda Tamanduá estava cercado. As mulheres e as crianças já haviam saído do cerco sobre a garantia de Calixto que nada aconteceria e o tiroteio com os que ficaram entrincheirados na sede começou... Foi um dia e meio de fogo cerrado, até que resistiram muito tempo, apesar de estarem bem armados, não esperavam uma reação tão bem planejada, eram quase cem homens armados. O Coronel quando viu os recursos de defesa ficarem escassos resolveu se entregar com todos que se encontravam na casa, na esperança de poupar algumas vidas. Mas Calixto estava determinado, quando tomou o casarão, eliminou todas as vinte e duas pessoas da família do Coronel Domingos Ferraz. Inclusive ele e seu genro Afonso Lopes, este último foi decapitado a golpes de foice... Os corpos ficaram expostos no lugar da tragédia, os parentes temiam uma represália a quem fosse enterrá-los. Só depois da interferência de pessoas neutras na briga é que foram sepultados ali mesmo onde tombaram. Do que sobrou do casarão incendiado os anos se incumbiram de demolir.  Calixto saiu da região, seu objetivo já tinha sido alcançado. Dos jagunços trazidos por ele a maioria ficou (outra grande tragédia), supõe-se que teriam sido contratados pelos coronéis da região ainda receosos com o fato. Esta briga entrou pelo tempo e durou até a década de 40 causando muitas mortes, inclusive a do próprio Calixto que morreu numa emboscada num povoado do norte de Minas Gerais. Ainda bem que o tempo, este mago que faz desaparecer as marcas deixadas no espaço, se encarregou de apagar todos os vestígios da rivalidade entre os descendentes dos personagens desta tragédia secular.

sábado, 26 de outubro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

SABIÁ...
Nando da Costa Lima
 O sabiá não se aguentava de cansaço, antes o perigo eram os alçapões e os badoques dos meninos, agora é só sobrevoar um polo industrial que tá correndo risco de vida. Tava tão exausto que nem cumprimentou o velho tamarindeiro que lhe servia de pouso, mas este, com a paciência dos mais velhos, puxou conversa – Como vão as coisas amigo Sabiá?
- Que coisas meu velho?
- O mundo como você sabe, eu, apesar de contribuir para que o homem respire, não tenho asas como você para estar onde as coisas acontecem. Há mais de um século estou nesse lugar, claro que vi muitas coisas, mas tudo que pude observar durante toda minha vida você vê em dobro num simples voo. Aqui agora nem vem ninguém passear na praça com medo de assalto, por falar nisso amigo, é a profissão que mais tem gente. Será que tá tendo concurso pra ladrão???
- Não, tem eleição. Mas voltando à situação do mundo, você vai é agradecer por não ter asas. Parece que a miséria quer se apossar do mundo e colocar a desgraça como secretária, a cada dia a terra perde um pouco de sua vitalidade. Antes, quando eu estava voando só avistava o verde, hoje só se vê fumaça e concreto, eu até acho que o objetivo do homem moderno é cimentar o mundo.
- Mas sabiá, a coisa não deve estar tão ruim assim, eu mesmo só estou vivo até hoje graças ao homem.
- Isso é porque você deu sorte em não ser madeira nobre e ter nascido num jardim duma praça onde a cidade praticamente foi fundada. Se não fosse isso, há muito tempo você já teria virado lenha ou madeira para móvel.
- Você está sendo injusto, o homem tá fazendo de tudo pra manter o equilíbrio da natureza, disso depende a vida dele, e eu acho que eles não são tão burros para darem um fim coletivo à vida. Acho-os inteligentes até de sobra.
- Que inteligente que nada, os homens vivem perdidos em problemas existenciais insolúveis, vivem procurando o sentido da vida sem antes refletirem que sem vida não existe sentido algum, eles nunca irão entender que viver já é um grande prêmio, são uns desorganizados.
- É sabiá, eu entendo sua revolta, a mocidade sempre foi rebelde, com ou sem razão vocês estão sempre certos, só acho que você está exagerando, no meu modo de ver o homem representa a inteligência. Nos meus muitos anos de vida sempre imaginei o mundo como um gigante,o homem é o cérebro desse gigante.
- Então o cérebro desse gigante está doente, ele está sendo responsável pela morte do resto do corpo. Do jeito que vamos não tarda e isso tudo vai virar um deserto, até a floresta amazônica já tá sentindo o baque.
- Se o mundo tá tão devastado e o homem tão ruim, como é que até hoje os índios estão aí com tudo que têm direito?
- Disse bem meu velho, o índio tá tendo tudo que tem direito do mundo civilizado: sarampo, catapora, varíola, e o garimpo, que é pior do que qualquer doença. Os índios são como nós passarinhos, adoram a liberdade, mas depois do convívio com a civilização, não conseguem sobreviver no seu habitat natural. Somos raças em extinção, a cada dia nosso espaço se encurta. Nossas esperanças diminuem a cada árvore derrubada.
Terminou de falar chorando convulsivamente. O tamarindeiro se impressionou com o pessimismo do sabiá, ficou tão comovido que até o convidou pra fixar moradia ali nos seus galhos. O sabiá agradeceu, mas recusou à oferta, seu destino era correr o mundo. A velha árvore vendo que não havia maneira de convencê-lo resolveu dar outro tipo de ajuda ao amigo, conseguiu o endereço de um desses grupos ecológicos que viraram partido político, na sua opinião os ecologistas seriam os únicos que poderiam livrar o sabiá daquela crise. Entregou o endereço ao amigo e explicou que naquele lugar ele só iria encontrar gente boa, pessoas inteiramente voltadas ao bem estar de todas as espécies. O pássaro despediu-se da velha árvore e partiu para o encontro, quando pousou na janela da sede dos amantes da natureza, chamou a atenção de todos, o presidente pediu logo uma gaiola pra prender o bicho e manter como mascote do partido, o tesoureiro achava melhor matar o pássaro e empalhar, dinheiro tá muito difícil pra tá enchendo o papo de passarinho, teve até quem sugerisse o passarinho desfiado no arroz. Aquilo foi demais para ele, saiu dali decepcionado com a raça humana, foi direto pro tamarindeiro, ficou vários dias por lá, não falava uma palavra, era o retrato da tristeza. Um dia amanheceu morto debaixo do tamarindeiro, um dono da razão que passava pelo local explicou para os curiosos que a ave morreu por falta de ar puro.  Mas a velha árvore sabia que tudo aquilo era mentira, não passava de conversa de um ecologista com cara de bode cheirando mijo, a verdade é que o sabiá suicidou-se, ele viu quando o amigo ingeriu uma grande dose do agrotóxico esquecido pelo jardineiro num dos bancos da praça, tava inconformado com a burrice humana. “E ele tinha razão, do jeito que o homemvem se contradizendo, é bem capaz que alguns grupos de defesa à ecologia sejam financiados por serrarias” – comentou o velho tamarindeiro.
A sábia sabiá sabia que o seu mundo tinha acabado.

sábado, 19 de outubro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

DELIRIUM TREMENS
Nando da Costa Lima 
       Como todo dono de boteco, só tinha uma coisa que Damião gostava mais que aumentar as contas da freguesia e fuxicar, era a birita! Vendia uma e bebia duas, já estava naquele estado em que o tornozelo fica parecendo um pilão. Mas era uma cachaça tranquila, não enchia o saco de ninguém..., a não ser sua mulher que toda noite acordava com ele aos gritos pedindo pra tirar a cobra de cima da cama. Marinalva já estava acostumada, nem abria os olhos, sabia que aquilo não passava de alucinação de pinga. Ela até tentou leva-lo ao médico, mas ele recusou terminantemente, pegaria mal confessar pra um médico que estava tendo alucinação, logo ele um comerciante de bebidas, além do mais seria o fim de linha pra sua fama de bom bebedor, era melhor conviver com a cobra imaginária que suportar as gozações dos amigos. Mesmo assim ela conseguiu uma consulta em casa com uma psicóloga, a doutora examinou o “bebum” e deduziu “que o paciente em questão teve uma transição desconexa do Id pressionando o Ego e desencadeando uma Cobrafobia crônica, o réptil já havia se instalado no inconsciente do paciente, causando um transtorno bipolar psico-cobrófico, um caso raríssimo.” Ninguém entendeu nada que a doutora falou e a cobra continuou aparecendo, ela até crescia... parar de beber nem pensar! O homem gostava tanto do álcool que passava as horas de folga fazendo experiências etílicas. Pra ele se não existisse álcool, o mundo morria de tristeza. Já imaginou um carnaval sem cachaça?
      Depois de anos convivendo com aquela agonia noturna, Marinalva decidiu dar um ultimato pro marido, tinha cansado de carregar aquela “mala”. Daquele dia em diante, ou ele parava de beber, ou ela ia embora. Deu o prazo de 48 horas pra ele se decidir, já estava de saco cheio daquela cobra. Ficaria na casa da mãe até ele resolver. Caso ele se decidisse pela birita, ela mandaria buscar os filhos. Damião nesse dia tomou todas, tava tão carente que pediu ao filho mais velho aos prantos que dormisse ao seu lado para aliviá-lo dos delírios noturnos. E foi graças ao rapaz que o casamento de Damião foi salvo... É que nessa noite, seu filho matou uma cascavel enorme que passeava por cima da cama do pai. Marinalva quase endoidou quando soube, conviveu tanto tempo com aquela cobra pensando que não passava de alucinação de bêbado. Damião ficou tão alegre que triplicou a cachaça e Marinalva tomou gosto pela pinga depois do problema resolvido. Foi nas ondas do marido e largou até o emprego de professora pra dedicar tempo integral ao copo, bebia de igual pra igual com o maridão.
     Hoje, três anos depois do ocorrido, nós estamos aqui no velório de Marinalva (que morreu de cirrose hepática) escutando Damião contestar o atestado de óbito e jurar de pé junto que quem matou sua mulher foi uma sucuri com mais de 20 metros, que ultimamente vinha saindo de dentro do guarda-roupa, ele tinha certeza que Marinalva morreu foi de susto, a bicha parecia um dragão, só não tinha asa. Desta vez resolveram chamar um neurologista pra examinar Damião, mas doutor Tolentino se recusou, argumentando que aquilo era problema do IBAMA. Este órgão por sua vez mandou um memorando explicando que não tinha armadilha pra pegar alucinação. E o interessante é que de cada dez amigos de copo presentes no velório, nove já tinham visto a sucuri descrita pelo viúvo...

CARLOS ALBÁN GONZÁLEZ - CRÔNICA


“Presente de grego”
Carlos Albán González - jornalista
Era o dia 18 de maio de 2011. No luxuoso e prazeroso Hotel Transamérica, em Comandatuba, na Bahia, estavam reunidos alguns dos maiores pesos pesados do empresariado nacional, convidados pela Odebrecht para ouvir uma palestra do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a política econômica dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Ninguém poderia imaginar que naquele instante estava sendo “embrulhado” um “presente de grego” de um torcedor de futebol ao seu clube de coração.

Entre goles de uísque importado 12 anos, Lula, que havia completado oito anos na Presidência da República, levou para uma sala reservada do hotel Emílio e Marcelo (pai e filho) Odebrecht. Sem rodeios, na presença de Andrés Sanchez, presidente do Corinthians, pediu que o gigantesco conglomerado construísse, na distante região de Itaquera, em S. Paulo, um estádio para o seu clube, o Corinthians.  

Aquele encontro no litoral baiano aproximava os interesses das duas partes: Lula pretendia ampliar o leque de apoio ao seu partido, visando futuras eleições, abraçando a numerosa torcida do seu “Curintia”, na dicção do petista; a Odebrecht olhava com bons olhos o volume de construções anunciadas pelo governo de Dilma Rousseff, o que incluía as Olimpíadas de 2016.

Mas Lula tinha outros planos, que começaram a ser costurados um ano antes, com a visita do francês Jérôme Valcke, secretário da FIFA, ao Brasil, para inspecionar os estádios que receberiam os jogos do Mundial. Influenciado pelo petista e pelo presidente da CBF, Ricardo Teixeira, que não escondia sua antipatia ao São Paulo F. C., Valcke, que, depois da Copa, acusado de corrupção, foi banido do futebol, vetou o “Cícero Pompeu de Toledo”, o Morumbi, na época, o estádio mais moderno do país, com capacidade para mais de 100 mil pessoas, localizado numa região de fácil acesso da capital paulista.

Estava decretado: o estádio dos paulistas na Copa seria o “Itaquerão”, cujo orçamento inicial de R$ 450 milhões aumentou, no transcurso da obra, executada às pressas (um “poleiro” provisório foi colocado para a partida inaugural, em 14 de junho, a fim de atender uma das exigências da FIFA), para R$ 1,2 bilhão, dinheiro emprestado pelo BNDES e Caixa Econômica Federal (CEF).

No dia 31 de agosto de 2016, a Câmara dos Deputados afastou a petista Dilma Rousseff da Presidência da República. Começava um processo de transição na filosofia política do Brasil, concluído no dia 1º deste ano com a posse do palmeirense Jair Bolsonaro.

Os corinthianos, evidentemente, não esperavam essa drástica mudança  nos gabinetes do governo, em Brasília, incluindo seu torcedor mais famoso, Luiz Inácio Lula da Silva, e o presidente do clube, o espanhol-andaluz e deputado federal (PT-SP) Andrés Sánchez. De um dia para o outro o Corinthians se viu responsável por uma dívida bilionária, reputada pela revista “Exame” como “o maior golpe do dinheiro publico do país”.

“O Corinthians não vai perder o seu estádio”, garantiu Sánchez esta semana numa coletiva de imprensa, ao ser questionado sobre os atrasos, que somam R$ 520 milhões, nos repasses mensais à CEF. Por determinação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, o “Itaquerão” foi incluído na Dívida Ativa da União e no FGTS. Os adversários, naturalmente, torcem para que o estádio vá a leilão.   

Fazer parte dessa vexatória lista não é uma exclusividade do alvinegro paulista. Outros nove clubes (Palmeiras, Vasco, Fluminense, Botafogo, Avaí, São Paulo, CSA, Fortaleza e Cruzeiro) da 1ª divisão do futebol brasileiro poderão ter seus bens confiscados pela União. Além do atraso no recolhimento dos impostos federais e das obrigações sociais, estão em dívida com fornecedores e bancos, além das obrigações com a Justiça do Trabalho.

Aos inadimplentes o Congresso acena com o projeto de autoria do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), que propõe um programa de refinanciamento das dívidas, mas eles teriam que adotar a estrutura de clubes-empresa, deixando de ser associações sem fins lucrativos, sendo transformados em sociedades anônimas ou limitadas, e facilitando o acesso de acionistas, nacionais e estrangeiros. A transição é opcional.

“Não se trata de um perdão das dívidas”, explica o parlamentar, “mas de construir um acordo entre credor e devedor, que seja bom para todos”. Ao migrarem para o novo modelo, os clubes poderão usar o Refis para parcelar suas dívidas em até 240 prestações. Também terão direito a ingressar com pedidos de recuperação judicial. O projeto deixa claro que as associações devedoras precisam contar com a boa vontade dos credores das áreas cível e trabalhista.

Único representante baiano na divisão de elite do futebol brasileiro, o Bahia acumula hoje dívidas em torno de R$ 147 milhões, herança deixada por um regime ditatorial que durou 25 anos. Considerado hoje pela imprensa esportiva nacional como o clube mais democrático do país, o tricolor baiano, sob a presidência de Guilherme Bellintani, vem colocando em prática um processo de recuperação administrativa, financeira e esportiva, obtendo resultados importantes.

Fernando Schmidt, primeiro presidente eleito com os votos dos associados, recebeu em 7 de setembro de 1913 um clube desestruturado, mergulhado em dívidas, a maioria na esfera trabalhista, resultado de salários não pagos no passado a técnicos, jogadores e funcionários.

O Bahia conseguiu através de um acordo com o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-BA) renegociar a enorme dívida trabalhista, a fim de não sofrer penhoras e bloqueios judiciais. Mensalmente, o clube repassa ao TRT R$ 600 mil. O Bahia está entre os 14 representantes da série “A” que aprovam o modelo proposto de clube-empresa.

Arquivo do blog