CAÇOLA É COM
“C” CEDILHA
Nando da Costa Lima
Só
descobriram porque Dão Cheiroso, que era apaixonado pela noiva, botou tudo a
perder. Isto é: esculhambou com a vida do professor que já chegou ali com a
intenção de montar um grupo de teatro. Tá certo que naquela boca de caatinga,
falar era coisa rara! Talvez porque o ano foi de chuva, o pessoal tava até mais
sociável, suportaram aquele prosa ruim explicando que era especialista em
expressão facial, que estava ali à disposição do povo pra transmitir seus
conhecimentos das artes cênicas e aproveitar e ensinar à mulherada a ler e
escrever. 95% da população era analfabeta! Só aquele doido metido a professor
pra salvar a situação preenchendo o tempo com alguma coisa útil. Teve que
começar com o ABC. Foi nessa que Guilherme “Lorão” uniu o útil ao agradável:
ele tinha saído da capital do Sudoeste esporreteado pelo cunhado que já tava
cansado de sustentar aquele preguiçoso metido a artista. O cunhado jogou a mala
de Guilhermão no meio da pracinha do Gil num horário de movimento, todo mundo
viu. Agora não dava mais pra ele ficar naquele ambiente, tinha queimado o
filme! A irmã ainda ajudou, deu um pouco de dinheiro pra ele comprar uma
passagem pra roça, lá ele sossegava o facho e parava com aquela conversa de
ator perseguido pelo sistema.Quando chegou no povoado, foi logo notado: era dia
de feira... Mas mesmo que não fosse, todo mundo ia notar aquele vara-pau de 1,90
usando um terno branco bufado e um Vulcabras 46 lustrando. Foi logo apelidado
de “Vara” pelos biriteiros e futuros colegas de copo do mestre das artes
cênicas. O “Lorão” é porque ele já tava ficando grisalho e dum dia pro outro
apareceu todo pintado de louro, até os do suvaco!
Seis
meses se passaram e Guilherme já tinha virado uma celebridade, a cidade tinha a
maior estima pelo mestre, ele não ficava um dia sem ser convidado pra almoçar
ou jantar na casa de uma das suas alunas, todas senhoras bem casadas. O fogão
de Guilhermão tinha tempo que não via fogo, deu até teia de aranha. Mas tinha
que ser assim, o homem era retado: além de alfabetizar, ainda dava aulas de
teatro. Estava empenhado de corpo e alma na cultura regional, dava até pra ser
Ministro da Educação. Sabia até falar português, isto sem contar a “treita de
sete jegues”. Ele já tava mandando, dava opinião em tudo. Os homens saíam cedo
para o campo, só tinha trabalhador rural... Capinar na caatinga não é pra
qualquer um, bater enxada numa terra seca e cheia de pedra... Um dia parece uma
eternidade. Mas enquanto os maridos metiam a enxada chão adentro, as senhoras
ficavam em casa aprendendo a ler e representar. E é claro, cozinhando quitutes
para o mestre. E aquele safado ainda tinha coragem de botar defeito nas comidas
que ele não gostava. Quase toda casa tinha uma rede pro filho da puta do
professor de teatro.
Como
já foi dito, o problema começou por causa do ciúme doentio de Dão Cheiroso.
Também, foi arranjar uma noiva com uma bunda que parecia uma escultura... É
claro que tinha que morrer de ciúme. Ô bundão! Antes ela vivia aos chamegos com
o noivo e dono do único boteco da terra. De repente, começou a botar defeito em
tudo que Dão fazia. Ele ficou retado, não podia mais nem passar meleca no
balcão ou cuspir no chão do boteco, tudo era “gafe” pra ela depois que o sacana
do professor mudou pra lá. Um dia Dão encheu o rabo de pinga e esculhambou com
a raça do filho duma égua do professor. Ofendeu até as senhoras que eram alunas
do mestre Lorão. Sua noiva ainda tentou se defender falando que as 32 vezes que
o “pró” foi na casa dos pais dela foi pra tirar alguma dúvida escolar (os pais
dela já tinham morrido há mais de dez anos, só moravam ela e a avó caduca). Aí
Dão ficou mais retado do que já estava e acabou de detonar o sacana do
“artista” que, segundo ele, já tinha corrido a mão boba na maioria das mulheres
que ele dava aula. E pra frisar mais a safadeza, citou o nome de dona Clemilda,
casada com Climério Pato Roco, poeta e apaixonadíssimo pela esposa. Quando não
estava capinando, tava escrevendo versos para a musa. Climério, que tava no buteco,
perdeu a cabeça e quebrou o linguarudo na porrada. Subiu pra casa retado, levou
um litro de pinga que secou ainda no caminho e já chegou na residência com a
conversa armada. Sentou no sofá, chamou a mulher e perguntou educadamente,
quase chorando... Era um homem apaixonado!
— Clemilda, eu só quero que você
seja sincera comigo. Você sabe que eu sou poeta e jamais partiria pra
ignorância. É que eu fiquei com uma pulga atrás da orelha depois da conversa de
Dão Cheiroso, ele chumbou e abriu o bico. Esculhambou com a raça do professor.
Disse que o mestre tá correndo a mão boba em todas as alunas. O povo tá
esperando ele voltar de Conquista pra quebrar ele no pau, tá todo mundo retado!
Aquele tarado merece. Segundo Cheiroso, a mulherada que aprendeu o ABC com ele,
quando chegava no “X” de “Xexéu” e no “Z” de “Zebra”, o professor já tinha
corrido a mão boba no corpo todo. E quando passava pra cartilha da Lili e
ensinava a botar cedilha em “caçola”, é porque o negócio já estava
adiantadíssimo. É por isso que eu tô com uma pulga atrás da orelha, você é a
maior lindeza e é aluna daquele safado... Será?
— Ué, Climério. Cêtá me achando com
cara de quê??? Cê acha que eu sou as putas da Rua da Capela? Me respeite! Tá
igual menino, acreditando em fuxico de dono de buteco. Isso é porque a noiva
dele é a aluna mais aplicada.
— Tá bom, Clemilda. Cê tem razão,
eu vou parar com essa bestagem. Mas será que dá pra você soletrar “caçola” só
uma vez? É pra me desencafifar de vez e parar com esse ciúme besta.
E
só depois que Clemilda soletrou “caçola” com “ss” é que ele foi ficando mais
calmo, sossegou e dormiu o sono dos justos... Sabia que a mulher ainda não
tinha aprendido a botar cedilha em “caçola” com aquele professor filho da puta.
Dava tempo de evitar o pior, deixa aquele sacana chegar
da capital. Antes de pegar no sono, planejou comprar uma garrafa de Jurubeba
Leão do Norte. Tinha que mostrar pra Clemilda que ele ainda era um touro...
Touro não! Outro bicho. Um leão, que não tem chifre.
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