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sábado, 23 de novembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

Diplomacia

Nando da Costa Lima
Panela de barro, fogão a lenha, cortado de maxixe com carne seca… O cheiro da comida de Alvina tomou conta da Rua Grande. Era dia de feira, tinha gente de todo o canto, o barracão tava que não cabia mais ninguém. Tinha bêbado, tinha pedinte, tinha de tudo que uma feira exige. Até ladrão! Um vendedor de passarinho tava querendo que um soldado comprasse uma araponga já mansa. Segundo ele, o negócio não deu certo: o soldado estava bêbado e quebrou a gaiola toda, o passarinho aproveitou para ser livre novamente e o vendedor foi recolhido por afronta a autoridade. Foi engaiolado no lugar do passarinho. Dona Nita do arroz-doce gostou de ver, “É praquele amarelo parar de armar arapuca pra pegar os bichinhos…”. Por que, em vez disso, ele não catava lenha? Tinha quem comprasse! Mas não, o sacana do Bertulino só queria saber de passarinho. Era uma profissão como outra qualquer, só que quem a exercia ficava mal visto, era coisa de gente preguiçosa. E quanto mais quando se tratava dos Araponga, o pai de Bertulino ficou famoso depois que ensinou um papagaio a falar “Aldagisa filha da puta” e deu de presente pro vizinho da avó. A velha não podia mexer na cama que o sacana do louro começava a assoviar e xingar. O Dr. falou que Dona Aldagisa infartou de tanto passar raiva. Coitada. Mas Bertulino não abria mão da profissão, ele vinha de uma linhagem de passarinheiros que há muito tempo comercializava arapongas, tanto é que todos da família assinavam o nome da ave como sobrenome. Bertulino Araponga era da quarta geração. Mas era comum os feirantes adotarem o nome do produto que vendiam: era João do Fumo, Zé do Bode, Maria do Andú… O pirão de rabada da barraca de Zenilda era famoso, vinha gente de fora só pra provar. Todo mundo sabia quem era Zenilda do pirão.
Foi numa barraca que só vendia fumo de rolo e pinga (E é claro que rolava um joguinho apostado). Foi ali que um jogador, já meio tomado, começou a falar sobre uma surra que ele tinha dado num professor a mando de seus próprios aliados. A história contradizia toda a versão conhecida pelos demais. Apesar de terem certeza de que era mentira, eles insistiram que Emergildo de Duda contasse a versão da surra que um professor e poeta tinha tomado no início do século, o que atiçou a curiosidade do pessoal. A surpresa foi quando ele disse que foram os próprios aliados: todo mundo sabia que quem encomendou a surra foi o outro lado. É que se fosse pra decidir só com o pessoal daqui, o lado do juiz ganhava. Eles tinham que convencer o coronel em Macarani, pra entrar pro lado deles. Mas a disputa era entre parentes, e este não queria se meter na briga dos primos. A forma achada foi essa: o coronel tinha sido aluno do professor poeta e tinha um respeito muito grande pelo mestre. Era claro que quando soubesse que o seu professor tinha sido espancado por um dos lados ele tomaria partido do pessoal que tinha o professor como um de seus líderes. Essa decisão foi fundamental.
— Não se sabe quem, mas eu garanto que quem contratou era gente do mesmo lado. Eu sei porque eu ajudei a dar a surra, foi fácil… O poeta nem pôde reagir. Seu amigo, então, nem teve tempo de descer do cavalo. Morreu lá mesmo.
Aí uma senhora conhecida do poeta que estava passando pelo local, ao escutar a conversa, retrucou:
— Agora que o povo tá em paz, já nem se fala mais em briga, você vem com essa mentira, seu cachaceiro. Daqui a pouco você vai falar que foi papai que mandou bater no professor Manoel. Cê tá lembrando da tropa que sumiu com os animais arreados? Imagina você que só anda só, é tão miserável que nem amigo tem.
— Se a senhora tá me ameaçando, é melhor mandar seu marido tomar frente na briga. Meu negócio com mulher é só na cama. E tem que ser bonita!
— Não foi isso que Marluce falou. Ela tá decepcionada. Foi enganada. Viu alguém te chamando de jumento e pensou que era fazendo alusão. Casou com você e até hoje reclama da falta de atividade sua. Foi propaganda enganosa.
— A senhora agora quer se meter até na minha vida particular. Também, Marluce fica dando ousadia pra qualquer uma.
— Qualquer uma é a senhora sua mãe. E isso nem é segredo aqui, seu linguarudo. Quer mudar a história da cidade? Filho de jagunço, neto de jagunço… Quem é que vai acreditar? Além do mais, tem muita gente que se ficar sabendo dessa sua mentira vai fazer fila pra te mandar pro inferno na hora. É melhor você calar essa boca antes que eu costure com agulha de sapateiro.
— No dia em que uma mulher me fizer calar a boca, eu mudo de cidade ou visto uma saia.
— Então acho bom cê picar o burro antes da feira acabar. Se ficar, eu não me responsabilizo. Palavra de Belinha, e eu não tô aqui pra ver homem de saia.
          Quando Emergildo escutou o nome “Belinha”, gelou da cabeça ao dedão do pé. Só deu tempo de ajoelhar, e gaguejando tentou se explicar:
— Perdão, Dona Belinha. Eu inventei essa história pra ver se causava alguma sensação, a feira tava muito sem graça, não tinha um fuxico rodando… Foi por isso que eu fiz essa besteira. Pelo amor de Nossa Senhora, esquece isso
— Mas agora você já falou. Então é bom picar a mula, ainda dá tempo, a feira mal começou.
— Tá bom, Dona Belinha. Meu nome é Emergildo, eu sou filho de Dona Duda, ela mora na passagem pra fazenda da senhora. Fale pra mãe que eu fui em direção à guarita de Minas e que de lá vou pra Sompaulo, não tem tempo pra voltar… Sua bênção, Dona Belinha.
— Deus te abençoe. Cria juízo e esquece de voltar. Pode deixar que eu falo pra sua mãe que foi melhor você viajar do que ficar plantado aqui.
          E graças à diplomacia, correu tudo bem na feira da Rua Grande… Só Bertulino Araponga foi preso por se desentender com uma autoridade.

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