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sábado, 22 de junho de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

“PILÉRA”
Nando da Costa Lima
            Apesar da idade avançada, Dona Epistolina era lúcida e podia se locomover com facilidade. Só não podia beber bebida quente. A única bebida que ela ainda podia degustar era a Jurubeba Leão do Norte, ela até relacionava sua vitalidade com o melhor vinho composto do mundo. Mas quando tomava cachaça, ficava insuportável, ficava tão escrachada que foi o jeito parar. Tinha mais de quarenta anos que não bebia. Mas não é todo dia que se faz 90 anos, e essa data tinha que ser comemorada na fazenda preferida da matriarca, a “Três Cancelas”. Ela tinha mais energia que muita mulher jovem, não parava num canto! Não precisava de ajuda pra nada, só não gostava de dirigir. Mas isto não era problema: como era muito rica, sempre tinha uma cambada de netos e afilhados pra lhe acompanhar. Ficava viajando de uma fazenda pra outra, tinha várias! Mas a preferida era a Três Cancelas, ali foi o palco de grandes festas: São João, batizados, casamentos, etc. Na família tinha de tudo: cantor, ator, jogador de futebol, jogador de baralho, médico, pastor, político, padre… Tinha até um artista plástico famoso que ia presentear a madrinha com um quadro de nu artístico. E foi esse presente o responsável pelo mal entendido entre Dona Epistolina e suas filhas, netas, afilhados e convidados.
            A matriarca teve uma recaída e fundou na pinga, já tava empurrando o jipe. Falou o que devia e o que não devia, rasgou o verbo. Tudo começou quando o afilhado pintor tirou o pano que cobria a obra de arte. Dona Epistolina colocou a mão na cabeça e falou pro afilhado artista:
— Meu filho, sua pintura me fez lembrar do jegue Piléra.
            Os mais velhos tentaram evitar que Epistolina entrasse em mais detalhes da vida de Piléra, aquilo não pegava bem num almoço festivo. Mas não teve jeito, ela já estava de pé na cabeceira da mesa quilométrica. Tinha que ser assim pra caber tanta gente. A velha aumentava o volume da voz quando bebia, parecia que tava com um megafone. Uma das filhas fez um sinal pra ela maneirar, foi aí que ela ficou retada. Mandou a filha “se assuntar”, sentar o rabo gordo na cadeira e ficar calada. Ela não queria ser interrompida enquanto falava, e ameaçou:
— Se vocês não deixarem eu contar a história do Piléra, eu vou contar a história do Javanês que tinha um bar na Moranga - e deu um suspiro! (Essa era a história que a família mais temia).
            Depois da ameaça, ninguém mais tentou interromper, e Dona Epistolina continuou a história.
— O jegue tem esse apelido porque uma vez um senhor de São Paulo, de passagem pela cidade, quando viu o jumento excitado correndo atrás de uma égua, não acreditou. Ficou abismado. Abriu os braços como se estivesse medindo e falou: “Deve ser pilhéria”. Aí o povo que tava em volta aproveitou e colocou esse nome no jegue “Piléra”. “Pilhéria” é coisa de paulista. Ele reinou absoluto nos mangueiros e ruas da cidade, ficou famoso por seu apetite sexual. E por ter um defeito na pata, não servia pro trabalho, mas todos sabiam de suas histórias. Nesse tempo, os jegues ainda eram usados pra transportar água potável do Poço Escuro, a água vinha com carotes. Tinham também os feirantes que se locomoviam e transportavam sua produção em jegues, usavam cangalhas. E isso não tem muito tempo não - continuou Dona Epistolina da “Três Cancelas”.
As filhas e netas ainda tentaram interromper mais uma vez:
— Aí tá bom, vovó. Para com esse negócio de jumento, conta outra história….
Então a velha fechou a cara, virou outra cachaça e deu uma bronca conjunta em quem estava na festa:
— Eu vou contar a história que eu quiser. Estou na minha casa, os incomodados que se retirem.
            Aí ficou todo mundo quieto, escutando a história do famoso jumento.
— Piléra ficou famoso porque era muito bem dotado, pode até ser que aquele defeito na pata tenha ajudado na lenda, parecia que o bicho tinha cinco patas! Quando tinha feira ele aprontava, já derrubou muita barraca perseguindo as éguas usadas pelos feirantes. Só parava quando alcançava seu objetivo. A prefeitura até tentou evitar esses incidentes prendendo Piléra no mangueirinho de Dona Zezé quando era dia de feira. Mesmo assim, ele sempre dava um jeito de escapulir pra ir atrás da tropa de feirantes. A meninada gostava de ver Piléra em ação, acho que era por isso que ele sempre fugia do mangueiro.
            A velha insistiu com a história do jegue e o povo que tava na mesa não podia falar nada. Só um padre se levantou e saiu resmungando, já conhecia a história do jumento indecente.
— Tinha gente que falava que o jegue era encantado e que pertencia à velha da Rua do Gancho. Teve dois amigos que viram Piléra voando com a velha na garupa. Nisso eu nunca acreditei. EU, Epistolina da Três Cancela, juro que nunca vi essa assombração, é invenção dos cachaceiros do Magassapo que mataram Piléra… Eles tiraram a vida do bicho por causa de uma aposta. Os biriteiros fizeram uma lista pra ver quem acertava o tamanho da ferramenta do famoso jumento. Muita gente da cidade arriscou um palpite, a bolada tava boa. E foi isso que empurrou o jegue pra morte: como ninguém quis medir Piléra vivo, tiveram que abater o animal, coitadinho.
            Acabou de falar e caiu num choro profundo… A filha mais velha recriminou a mãe:
— Como é que a senhora tem coragem de chorar a morte de um jumento? Isto é heresia!
— Não é por causa de Piléra não, minha filha. É que eu me lembrei da minha juventude, e dos comícios e festas da vida.
— E qual foi a relação da sua juventude com um jumento? Tá parecendo uma velha despudorada, que coisa feia!
— Não fica enfezada comigo não, minha filha. Quando eu contei a história do jegue, os pensamentos da minha época de moça vieram todos de uma vez: festas, casamentos, Palmeira, comícios… Ui, minha nossa senhora.
— E quem é esse Palmeira, mãe? Pelo que eu sei, o nome de papai era Astrogildo.
— Deixa essa conversa pra lá, Palmerinda, foi a cachaça que misturou tudo nos meus pensamentos. Apareceram histórias que estavam escondidas no porão.
            Quem estava presente notou que o semblante de Dona Epistolinda era o de uma menina de 20 anos. Viajou longe, foi no melhor lugar de sua vida ao se lembrar de uma simples história. É claro que a cachaça deu uma força. Ninguém falou mais nada naquele dia, foram todos embora com Piléra na cabeça. Só ficaram sabendo que o ganhador da aposta morava na Rua do “Motô”. A filha não deixou a velha falar nem a metragem, nem quem mediu.

Ao meu amigo “Pirigoso”


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