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sábado, 26 de outubro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

SABIÁ...
Nando da Costa Lima
 O sabiá não se aguentava de cansaço, antes o perigo eram os alçapões e os badoques dos meninos, agora é só sobrevoar um polo industrial que tá correndo risco de vida. Tava tão exausto que nem cumprimentou o velho tamarindeiro que lhe servia de pouso, mas este, com a paciência dos mais velhos, puxou conversa – Como vão as coisas amigo Sabiá?
- Que coisas meu velho?
- O mundo como você sabe, eu, apesar de contribuir para que o homem respire, não tenho asas como você para estar onde as coisas acontecem. Há mais de um século estou nesse lugar, claro que vi muitas coisas, mas tudo que pude observar durante toda minha vida você vê em dobro num simples voo. Aqui agora nem vem ninguém passear na praça com medo de assalto, por falar nisso amigo, é a profissão que mais tem gente. Será que tá tendo concurso pra ladrão???
- Não, tem eleição. Mas voltando à situação do mundo, você vai é agradecer por não ter asas. Parece que a miséria quer se apossar do mundo e colocar a desgraça como secretária, a cada dia a terra perde um pouco de sua vitalidade. Antes, quando eu estava voando só avistava o verde, hoje só se vê fumaça e concreto, eu até acho que o objetivo do homem moderno é cimentar o mundo.
- Mas sabiá, a coisa não deve estar tão ruim assim, eu mesmo só estou vivo até hoje graças ao homem.
- Isso é porque você deu sorte em não ser madeira nobre e ter nascido num jardim duma praça onde a cidade praticamente foi fundada. Se não fosse isso, há muito tempo você já teria virado lenha ou madeira para móvel.
- Você está sendo injusto, o homem tá fazendo de tudo pra manter o equilíbrio da natureza, disso depende a vida dele, e eu acho que eles não são tão burros para darem um fim coletivo à vida. Acho-os inteligentes até de sobra.
- Que inteligente que nada, os homens vivem perdidos em problemas existenciais insolúveis, vivem procurando o sentido da vida sem antes refletirem que sem vida não existe sentido algum, eles nunca irão entender que viver já é um grande prêmio, são uns desorganizados.
- É sabiá, eu entendo sua revolta, a mocidade sempre foi rebelde, com ou sem razão vocês estão sempre certos, só acho que você está exagerando, no meu modo de ver o homem representa a inteligência. Nos meus muitos anos de vida sempre imaginei o mundo como um gigante,o homem é o cérebro desse gigante.
- Então o cérebro desse gigante está doente, ele está sendo responsável pela morte do resto do corpo. Do jeito que vamos não tarda e isso tudo vai virar um deserto, até a floresta amazônica já tá sentindo o baque.
- Se o mundo tá tão devastado e o homem tão ruim, como é que até hoje os índios estão aí com tudo que têm direito?
- Disse bem meu velho, o índio tá tendo tudo que tem direito do mundo civilizado: sarampo, catapora, varíola, e o garimpo, que é pior do que qualquer doença. Os índios são como nós passarinhos, adoram a liberdade, mas depois do convívio com a civilização, não conseguem sobreviver no seu habitat natural. Somos raças em extinção, a cada dia nosso espaço se encurta. Nossas esperanças diminuem a cada árvore derrubada.
Terminou de falar chorando convulsivamente. O tamarindeiro se impressionou com o pessimismo do sabiá, ficou tão comovido que até o convidou pra fixar moradia ali nos seus galhos. O sabiá agradeceu, mas recusou à oferta, seu destino era correr o mundo. A velha árvore vendo que não havia maneira de convencê-lo resolveu dar outro tipo de ajuda ao amigo, conseguiu o endereço de um desses grupos ecológicos que viraram partido político, na sua opinião os ecologistas seriam os únicos que poderiam livrar o sabiá daquela crise. Entregou o endereço ao amigo e explicou que naquele lugar ele só iria encontrar gente boa, pessoas inteiramente voltadas ao bem estar de todas as espécies. O pássaro despediu-se da velha árvore e partiu para o encontro, quando pousou na janela da sede dos amantes da natureza, chamou a atenção de todos, o presidente pediu logo uma gaiola pra prender o bicho e manter como mascote do partido, o tesoureiro achava melhor matar o pássaro e empalhar, dinheiro tá muito difícil pra tá enchendo o papo de passarinho, teve até quem sugerisse o passarinho desfiado no arroz. Aquilo foi demais para ele, saiu dali decepcionado com a raça humana, foi direto pro tamarindeiro, ficou vários dias por lá, não falava uma palavra, era o retrato da tristeza. Um dia amanheceu morto debaixo do tamarindeiro, um dono da razão que passava pelo local explicou para os curiosos que a ave morreu por falta de ar puro.  Mas a velha árvore sabia que tudo aquilo era mentira, não passava de conversa de um ecologista com cara de bode cheirando mijo, a verdade é que o sabiá suicidou-se, ele viu quando o amigo ingeriu uma grande dose do agrotóxico esquecido pelo jardineiro num dos bancos da praça, tava inconformado com a burrice humana. “E ele tinha razão, do jeito que o homemvem se contradizendo, é bem capaz que alguns grupos de defesa à ecologia sejam financiados por serrarias” – comentou o velho tamarindeiro.
A sábia sabiá sabia que o seu mundo tinha acabado.

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