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quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

JEREMIAS MACÁRIO - ENSAIO

“NO ARMÁRIO DO VATICANO – PODER, HIPOCRISIA E HOMOSSEXUALIDADE”
Jeremias Macário
Depois da Inquisição, iniciada no século XII, e da Reforma há mais de 500 anos, a Igreja Católica Apostólica Roma volta a protagonizar e a vivenciar sua maior crise de sua história contemporânea, com os escândalos de pedofilia (abusos sexuais de crianças e menores), atos de corrupção (desvios de recursos), resistências e divisões às mudanças em seu seio, intrigas no poder e muita hipocrisia dos prelados, padres, bispos e cardeais homofóbicos e, ao mesmo tempo, homossexuais dentro e fora da Cúria.
Sem o sentido de ódio e declarando não ser, em momento nenhum, anticlerical, o escritor Frédéric Martel publicou o best-seller do New York Times, “No Armário do Vaticano – Poder, Hipocrisia e Homossexualidade” (Editora Objetiva), uma verdadeira devassa explícita das práticas abusivas e escandalizantes perpetradas, principalmente, pelos homens homofóbicos e retrógrados que cercaram e serviram aos papados de João Paulo II e Bento XVI,este o maior inquisidor dos tempos modernos, que fracassou em todos os seus movimentos antigays, contra os casamentos homossexuais e o aborto.
     Ler o livro “No Armário do Vaticano” é entrar e conhecer as entranhas dos “pecados”, das mazelas e traições cometidos pelos que se dizem representante de Cristo e da Igreja na terra. É vivenciar de perto a prior crise de sua história depois da Reforma. É acompanhar a decadência e sentir a morte lenta da Igreja, a partir de personagens terríveis, promíscuos e hipócritas, como o Ângelo Sodano, o padre Macial Maciel, Tarcísio Bertone, Afonso Lopez Trujillo que chegou a fazer acordos com narcotraficantes, entregando sacerdotes para o sacrifício e torturas, entre tantos outros, que deixam católicos estarrecidos, envergonhados e revoltados. São verdadeiros desvirtuadores da doutrina cristã.
CONTRA O CELIBATO
O cardeal Ratzinger (Bento XVI), por muito tempo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Inquisição), sentenciou e humilhou com castigos vários padres por suas ideias mais avançadas (Teologia da Libertação), como o peruano Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff e o frei Beto. Cercado de homofóbicos, como o cardeal Sarah (livro contra o celibato), colocou a Igreja numa rota de colisão com os movimentos LGBTs, os divorciados e até muitos católicos de visão mais aberta.
  Para elaborar o livro, que deve ser lido por todos, não somente pela comunidade católica, o autor se aprofundou numa reportagem investigativa que durou quatro anos (entre 2015 a 2018), com várias viagens para a Itália e mais de 30 países. Foram realizadas 1500 entrevistas, sendo 41 cardeais, 52 bispos, 45 núncios apostólicos, onze guardas suíços e mais de 200 padres católicos e seminaristas, para a feitura da obra de 500 páginas. Para apurar informações, chegou a se hospedar no interior do Vaticano e em residências extraterritoriais da Santa Sé.
De acordo com o escritor, “No Armário do Vaticano” se baseia em fatos, citações e fontes rigorosamente exatas, com a maior parte das entrevistas gravadas (400 horas de gravações). Frédéric teve ajuda de uma equipe de 80 colaboradores. Seu editor Jean-Luc Barré acreditou no trabalho e ele fez um agradecimento às suas 28 fontes internas da Cúria Romana, “todos assumidamente gays comigo”. O livro foi defendido e liberado por uma quinzena de advogados.
“Além da mentira e da hipocrisia generalizadas, o Vaticano também é um local de experiências inesperadas: constroem-se lá novas formas de vida em casal; novas relações afetivas; novos modos de vida gay; tenta-se formar a família do futuro; prepara-se a aposentadoria dos velhos homossexuais” – analisa o autor, que ainda classifica cinco perfis de padres, como a “virgem louca”, o “esposo infernal”, o modelo da “louca por afeto”, o Don Juan falsificado” e o modelo “La Montgolfiera”.
 A “virgem louca” segue o código dos filósofos católicos Jacques Maritain, François Mauriac e Jean Guitton, e de alguns papas recentes homossexuais homofóbicos, que não são praticantes, mas adeptosda linha do amor platônico.Escolheram a religião para não cederem à tentação; e a batina para escaparem à sua orientação.O “esposo infernal” é o padre “não assumido”, ou em dúvida, mas consciente de sua homossexualidade e com medo de vivê-la. A “louca por afeto” tem sua identidade. O “Don Juan” não pode ver um rabo de calça. O modelo Montgolfiera é o da perversão que tem redes de prostituição, os tipos cardeais indecentes Alfonso López Trujillo, da Colômbia, de Ângelo Sodano, de Platinette, do padre Macial Maciel, do México e tantos outros da Cúria.

sábado, 25 de janeiro de 2020

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

Coronelas, recados e rezadores (Ficção)

Nando da Costa Lima
João Profiro mandou chamar o cumpade Neca com um recado que chegou a assustar o cumpade rezadô. O vaqueiro nem desceu do burro:
— Acode, Seu Neca. Teu cumpade João tá nas últimas, só o senhor pra rezar a barriga dele pra mode ele poder evacuar. O home tá sem peidar e arrotar desde ontem, parece coisa feita.
— Mas eu já falei pra parar com aquela ignorância de mandar cozinhar uma galinha só pra ele e outra pro resto da casa. Vai acabar quebrando o bucho, aí não tem reza. Eu já tô perdendo a paciência!
— Mas dessa vez não foi galinha não, Seu Neca. Foi um bode…
— Ele comeu um bode sozinho? Se foi isso, tá fudido!
— Não, ele comeu só metade e deu a outra pra família.
Quando o amigo chegou, João já tinha queimado até vela, e o padre também já devia estar a caminho. O vigário era mais tranquilo, sempre ia dar a extrema unção já sabendo do que se tratava. Mas o cumpade Neca já tava cansado, era quase todo dia aquele homem chorando e pedindo por “rezação”. E olha que ele já tinha explicado pro amigo que homem de bem como ele, que tem o corpo fechado e lê o livro de São Cipriano, não morre assim. Antes ele apaixona pela ex-mulher (se tiver), ex-namoradas, até a mulher atual ele começa a tratar bem. E o cumpade João nunca teve essas manifestações. Seu Neca explicou que ele tava com 65, que não podia tá fazendo essas extravagâncias. Mesmo assim, benzeu a barriga do amigo, fez o mesmo com uma garrafa da legítima Jurubeba Leão do Norte e bebeu toda com o cumpade. Antes de terminarem, Profiro já estava apresentando melhoras.
Quando já estavam na segunda garrafa do vinho milagroso, o cumpade Profiro já tinha ido ao banheiro duas vezes. Fedeu a casa toda, mas isso o rezadô resolveu queimando chifre de boi com mastruz. Eles já estavam jogando baralho quando o padre chegou fingindo estar preocupado. O dono da casa foi logo acalmando:
— Tá tudo bem,Seu Vigário. Eu tomei umas duas Jurubebas e resolveu na hora…
          O rezadô ficou ressentido e tentou completar a resposta do cumpade:
— A bebida e a reza!
          O padre não gostou, mas deixou pra lá. Acabou entrando na jogatina depois que sentiu que Dona Carmela tava preparando um ensopado de leitoa. Alí agora só depois da meia noite. O padre depois da terceira começava a entregar tudo que ouvia no confessionário. Isso fazia o anfitrião dar risada e o seu cumpade ficava sabendo de tudo que se passava na cidade. Era só anotar as conversas do padre e a receita já ficava pronta pra no caso de procurarem ele. Era fácil: Dona Rosinete, por exemplo, confessou que tinha pulado a cerca com um sobrinho, mas que já tava arrependida. Quando ela procurou o rezadô, ele já tinha uns banhos pra afastar o amante e um incenso de cocô de capivara seco pra sufocar o ciúme do marido. Nesse espaço de tempo, ele procurava o amante e falava, como amigo, que ele devia desaparecer pois o ofendido já sabia e estava tramando pra mandar ele pro inferno… Assim ele foi pegando fama não só na cidade, mas em toda a região. E o dinheiro nessas horas entrava a galope: Seu Neca já era proprietário, engordava até boi… Graças à cachaça do padre e à gula do cumpade.
Mas agora ele já tava mais rico que o cumpade e achava uma ofensa ter que acordar nas carreiras pra ir benzer a barriga daquele filho da puta! E o pior que tinha mais meia dúzia que praticava o mesmo pecado, a gula! Era uma canseira. A esposa de Neca já estava morando na capital, não aguentava mais aquilo. Era quase todo dia, tinha que passar o ramo na barriga de um e tomar pelo menos uma garrafa de Jurubeba com o cliente. Pela Jurubeba a patroa tinha ficado, Neca só andava em ponto de bala. O problema era ter que acordar quase toda noite pra ir cuidar da barriga de guloso. Foi o jeito mudar pra Salvador. Aquilo tava matando o rezadô, era apaixonado pela mulher. E não era pra menos, Dona Wanderleia era uma mulher linda! E tava só em Salvador…
— Você sabe que em cidade pequena a diversão do povo é falar da vida dos outros.
— Não é assim também não, Maneca. Lá em Conquista mesmo, ninguém tá aí pra vida de ninguém.
— Mas Conquista não é roça. Aqui não, os fuxiquentos marcam o dia da feira pra falar de tudo que se passou na cidade na semana. Já têm até um ponto.
— E você vai ficar ligando pra esse bando de desocupado? Faz isso não, cumpade. Se você mudar pra Salvador, como é que a gente faz?
—  Eu venho de seis em seis meses e já deixo as garrafas do vinho composto rezada contra indigestão!
— É, pelo visto você já tá resolvido. Não adianta insistir.
— Eu cansei, cumpade. Não quero fazer mais nada, é muito cansativo. Se você soubesse a trabalheira que dá pra rezar uma “espinhela caída”, isso eu não faço mais nunca. Já jurei com a mão no livro de São Cipriano que nunca mais faço essas coisas….Tirando suas caixas de Jurubeba, cumpade Profidio, eu não rezo mais porra nenhuma. Já tô morrendo de saudade de Wanderleia.
— Tá certo, cumpade, coqui amansado com comprimido não pode dar solta…  
— O que o cumpade quis dizer com isso?
— Nada não, eu quis alertar ao amigo que a cumade é muito nova e bonita pra ficar só em Salvador.
— Só não, na casa da tia. Só de primo ela tem mais de 10 para tomar conta. Ninguém encosta!
— É, Neca. Nesse caso, você tem que ir o mais rápido possível…
— Mas cumpade, tudo você leva pro lado maldoso. Na família de Wanderleia, priimo é igual irmão.
— Tá bom, cumpadee. Mas é melhor você não perder tempo. Daqui pra capital é chão. Isso se você der sorte e pegar a Marinete até Poções, de lá só caminhão pode te levar. Ônibus só passa domingo, e só passa cheio.
          Passou umas duas horas, chegou um menino “nas pressa” e fala pro rezadô que a madrinha dele mandou ele ir lá agora rezar uma espinhela caída. O rezadô já tinha tomado todas e tava se queixando pro cumpade que a coisa mais cansativa era rezar uma espinhela caída… Foi aí que o rezadô desabafou, nem levou em conta que era um menino.
— Fala pra sua madrinha pra ir procurar rezadô na casa do caralho.
          E continuou a prosa, comendo e bebendo com o amigo, era uma espécie de despedida… Mas o dia não era dos melhores. No fim da tarde, o peru já tava assado e dividido quando chegaram dois homens armados e lá de fora chamaram o reazadô. Só fizeram bater palma… Profiro saiu pra ver quem era, os cabras se apresentaram e ele entrou apressando o amigo rezadô.
— É pra você, vai logo que é caso de vida ou morte.
— Vida ou morte merda nenhuma, já viu espinhela caída matar alguém?
— Mas foi aquela senhora que tem uma fazenda lá pras bandas de Belo Campo, é ela que tá precisando dos serviços do cumpade.
          Aí o rezadô amarelou e curou a cachaça na hora, foi logo arrumando a maleta. Pediu um paletó e uma gravata emprestados ao cumpade. Se ele não atendesse aquele pedido, seria realmente um caso de morte! Neca já saiu explicando pros jagunços:
— Foi o merda do menino que não soube dar o recado, se eu soubesse que era pra ela eu já tava lá. Cadê o meu burro que eu não tô vendo? Vocês esqueceram de trazer um animal pro rezadô se locomover?
— Não, senhor. A madrinha mandou o senhor tirar a botina, o contato do pé do rezador com a terra vai proteger o caminho e clarear as ideias. Ela disse que o senhor tem que chegar lá bem leve pra prestar bem os serviços.
          Neca Rezadô olhou pro sol, olhou pros jagunços, tirou a botina e falou:
— Pra uma mulher bondosa daquela eu vou até em Sompaulo andando, Belo Campo é um pulo.
          Quando eles chegaram na casa, a madrinha fez cara de quem tava com dó. Mandou os meninos colocarem água fresca numa bacia pro rezador aliviar o cansaço, deu até um refresco de tamarino pra ele matar a sede. Quando ele começou a se recuperar da viagem, ela falou no pé do ouvido dele:
— Depois da rezação, Cirilo Ranca Tôco vai acompanhar o senhor até a casa do caralho, eu tenho que ficar sabendo onde é…
Aí o rezadô caiu como se fosse desmaiar, mas continuou com os olhos abertos, só que não falou mais nada e não mexeu nem um dedo. Tava na cara que tinha travado de medo, ficou esquisito, o olhar perdido… Só gemia um pouco quando via a cara da dona da casa, um gemido agudo e sofrido que só parava quando ela saía do seu campo de visão.
Tiveram que acomodar o paciente numa carroça, a madrinha fez questão de que um dotô formado constatasse que foi doença e já mandasse um atestado junto ao enfermo. O doutor foi claro:
— Está constatado que foi um AVC.
E explicou pros presentes que AVC era um enfermidade no cérebro, pode acontecer com qualquer um. Não tinha nenhum hematoma que confirmasse agressão física. Os jagunços entregaram o pacote completo, paciente e atestado médico. A madrinha fez questão de explicar pros jagunços que deveriam reunir o pessoal da vila e dar o atestado pra uma pessoa ler em voz alta pro resto dos curiosos, ela tava farta de fuxicos e cansada de ser relacionada à violência. Só que o jagunço “Tô na Moita” quis impressionar uma das moças presentes e, antes que abrissem o envelope com o parecer médico, falou com ar de entendido:
— Pois é, pessoal. O rezadô comprovou que, nesse mundo, quem tem cú tem medo… Mas o dotô disse que foi “ABC no célebro”.
Isso evitou muita conversa à tôa. A maioria do pessoal nem ficou pra ouvir a leitura do exame. O povo já tinha achado um milagre ele ter voltado vivo depois de um recado desaforado daquele. Alguns chegaram a pensar que os cabras tinham cortado a língua e as juntas do indivíduo. A explicação de “Pedro Tô na Moita” foi providencial, ninguém mais ficou com dúvida.

JEREMIAS MACÁRIO CRÔNICA

O POVO SÓ LEVA PAU NA MOLEIRA
Jeremias Macário
 É muito choro e ranger de dentes nos noticiários diários da nossa mídia, com lágrimas de idosos riscados pelas rugas da dura vida nas filas do INSS a rogar, piedosamente, pelos seus justos direitos de aposentadoria e outros benefícios negados. Neste país das castas privilegiadas que vivem em suas mordomias, o povo escravizado só leva pau na moleira.
Nos corredores dos hospitais, nas matrículas nas escolas, nos cadastros para montar uma barraca no carnaval e nas matanças violentas das balas perdidas, nos assaltos dos bandidos e na truculência desvairada militar, são outros vales de lágrimas. São gritos e sussurros engasgadosque pedem por justiça.
Os apelos angustiados e lamentosos sempre são dirigidos a Deus, como se Ele fosse o responsável por todos as mazelas, os erros dos homens e as tiranias do poder aqui praticadas neste pedaço de terra paradoxal onde quase nada funciona. Aqui são cometidos os maiores absurdos e ilegalidades, como se tudo fosse normal.
Se existe o livre arbítrio, creio que Deus não tem que se meter nessa maluca bagunça de atos cruéis de injustiças, para resolver os problemas que não foram criados por Ele.O ser humano sempre está na contramão, agindo na direção da contradição e da incoerência, e tenta enganar a si mesmo, como se não fosse de nada culpado.
Só sabe em tudo citar o nome do Supremo, na maioria das vezes, em vão, até em jogos de azar, nas loterias da vida e no futebol, quando vence, ou quando rouba descaradamente. Sempre existe aquela máxima do foi Deus que assim quis, especialmente saída da boca de fanáticos lunáticos fundamentalistas.
 O humano agride gananciosamente e com usura capitalista o meio ambiente que, por sua vez, responde e dá o troco merecido, mandando catástrofes, tragédias, devastações e mortes. Ai, metem Deus no meio, e os sobreviventes agradecem sua proteção, como se eles fossem os únicos eleitos inocentes, e os outros os escolhidos do Diabo, que vão para o fogo do inferno.
  Enquanto o povo leva pau na moleira todos os dias, e é levado para o mourão das chibatas no lombo e na alma escravas, os poderes legislativo, judiciário e executivo nadam em dinheiro e curtem suas orgias, com privilégios de três meses de férias nababescas com seus supersalários, sem contar o que corre por fora. Essa banda, que é o próprio Estado oligárquico, ainda reclama que ganha pouco e merecia ter mais aumentos.
  Faltam recursos para contratar mais servidores para o INSS, para a compra de medicamentos aos doentes, para aparelhar os hospitais, para pagar uma remuneração mais digna aos professores e equipar escolas, para provir de saneamento básico metade da população que vive em favelas e periferias, convivendo com esgotos a céu aberto, mas nunca falta verba graúda para o Congresso Nacional, para as assembleias legislativas e para as quase seis mil câmaras de vereadores inchadas e entupidas de assessores que nada fazem.
  O povo brasileiro só leva pau na moleira, se sujeitando ao trabalho escravo (milhões padecem no purgatório da informalidade) e às humilhações dos patrões, com baixos salários atrasados e, muitas vezes, sem direito a férias e outros benefícios. Ainda assim comete a burrice de se dividir, brigar entre si como inimigos ferrenho de morte, cada um defendendo seu canalha, seu ladrão e seu usurpador do poder.
Cada um vive a sua individualidade mesquinha, vegetando enquanto tem um dinheirinho no bolso para tomar umas geladas nos bares, ir a uma festa, comprar um carrinho com prestações a perder de vista, e só reage quando sofre na pele uma injustiça social, uma violência ou uma falta grave de atendimento à saúde, devido à ausência do Estado. Ai, então, o cara aprende a engolir o choro da amargura, e até entra em depressão, abreviando a vida.
  O mesmo povo que só leva pau na moleira, é o mesmo que acredita em falsas notícias de que as coisas estão melhorando, e que a ele está reservado um futuro promissor. Levanta as mãos aos céus na espera que de lá caia uma graça divina. Entrega as injustiças a Deus. Nunca aprende a lição e repete festivo sua fé, de dois em dois anos, na boca da urna, crendo ser o dia mais importante de um ato de cidadania. Passa o tempo e ele continua levando pau na moleira.

sábado, 18 de janeiro de 2020

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

64

Nando da Costa Lima
Minha mãe tinha comprado meu primeiro velocípede… Eu estava passeando na porta da igrejinha e parei pra escutar aquele homem gordo que vivia elogiando Pedral, tinha muita gente em volta quando ele disse na maior altura que o Prefeito era comunista, o exército tinha as provas; o padre mandou ele ir falar de política na porta do batalhão, ali não era lugar! Eu corri pra casa e disse pra Dida que tinha um ho­mem falando que “Zé Pedral” era comunista, ela ficou retada e disse que devia ser algum safado vira folha, aí que eu notei que o homem gordo daquela vez não estava elogiando! Fiquei sa­bendo no mesmo dia que comunista era vermelho e gostava de comer criancinha, esta revelação me intrigou: Zé Pedral não era vermelho, disso eu tinha certeza! Eu estudava na escola de Tia Lícia, sua primeira esposa, e das vezes que ele entrou lá deu pra ver que era branco. Quanto ao churrasco de criança, disso eu não podia ter certeza.. .Da terceira vez que indaguei sobre comunismo me cortaram definitivamente falando que política era coisa de gente grande e dava cadeia. Mas por mais que eu ten­tasse aquilo não me saia da cabeça…, fiquei mais confuso ainda quando fui com meus pais buscar J. Pedral, ele tinha sido solto. Não dava pra entender porque prenderam o homem se to­do mundo da cidade gostava dele, nem porque soltaram já que era um comunista. Mesmo na dúvida não perguntei nada, era coisa de gente GRANDE.. .mas ficava sempre ligado nas con­versas dos adultos, uma vez eu escutei um político cassado fa­lar pra meu pai que Castelo era um bosta. Lembro-me que gostei de escutar aquilo, acho que foi porque ele tinha cassado São Jorge, um dos santos preferidos de Dida, a imagem que eu tinha de Castelo era a pior possível! Mas quando o avião dele explo­diu fiquei com pena, achei até ruim quando soube que aquele político cassado tinha soltado uma caixa de foguetes pra come­morar. Pensei que a revolução tinha morrido com Castelo, aí meu irmão mais velho falou que o exército continuava mandan­do. O exército passou a ser o vilão da minha infância. Além de ter prendido o marido de minha professora, cassou o São Jorge de Dida e o Cosme e Damião de minha mãe.
Em nossa casa raramente se falava de política, meu pai evitava, eu imaginava que era porque médico tinha que tratar e ser amigo de todo mundo, até de comunista! A visita que eu mais gostava era seu Gilberto, nosso vizinho, ele sempre co­mentava sobre a revolução, segundo ele o exército jâ tinha to­mado “as rédeas do poder”, sô uma revolta popular podia conter aquele processo. Eu não entendi bem aquilo, mas uma vez eu vi o dono da venda falar pra um freguês na hora que ele passou pela porta -“Aquele ali se fudeu com a revolução”. E isso qua­se me fez levar uma surra, é que um dia logo depois que seu Gilberto saiu lá de casa, eu virei pra minha irmã e falei crente que tava abafando “Esse aí se fudeu com a revolução”. Dida me deu um beliscão e ameaçou contar pra meu pai caso eu re­petisse; Vô Almirante tava na hora e não falou nada, eu senti que ele deu as costas só pra não rir em minha frente. E mais uma vez me pediram pra parar com aquela bobagem de revolu­ção, política era coisa de gente GRANDE…
O tempo passou, e do menino que andava de velocipede e estudava pré-primário na época da revolução só ficou a famosa foto que todos tiravam sentados na escrivaninha de Tia Lícia folheando um livro e ten­do ao lado um globo terrestre e a bandeira brasileira. Vieram os filhos, e hoje quando eles procuram explicação para a situação atual do país. Dessa revolta sem líderes nem partidos. Não tem como deixar de imaginar: Se as forças cujo dever é manter a ordem e proteger nossas fronteiras resolverem punir os vândalos e unirem-se às concentrações passivas reivindicando junto a eles??? Seria coerente que nossos politicos de direita, de esquerda e até os que ficam em cima do muro, ao invés de aproveitarem da situação, analisassem esta probabilidade com mais veemência, sem esquecer que democracia não é só um termo para ser usado em frases de efeito ditas em palanques. Deixa a politica de lado “minino”, politica é coisa de gente…

sábado, 11 de janeiro de 2020

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

E ele nunca mais fez gol…(Ficção)

Nando da Costa Lima
E João Carne Seca, o “Canhotinha de Ouro”, que batia falta como ninguém e não perdia um gol do meio de campo pra frente nunca mais irá sair de campo carregado pela torcida… Foi operar de fimose e, não se sabe porque, amputaram seu pé esquerdo. Erro médico, errar é humano (Quem inventou esse ditado popular deve ter sido a mãe de um médico). Foi aí que Pedrão “Três Bago” (irmão de “Carne Seca”) ficou puto e desabafou: “Também, a gente entra num hospital e encontra um cidadão com roupa de médico, pose de médico, estetoscópio pendurado no pescoço, as enfermeiras bonitas chamando o sacana de doutor, a gente acaba botando fé. Só que de médico ele não tem porra nenhuma, a não ser o diploma conseguido sabe-se lá como. Daí o time perde o melhor ponta esquerda da região e fica por isso mesmo. Médico uma porra!”.
Se for qualquer tipo de doença que os exames laboratoriais não possam localizar, o médico com certeza lhe dirá ou chamará alguém da família e informará que é tudo psicológico. Não seria também a medicina catastroficamente praticada um estado retroativo da ciência? O óbvio, a sensatez, a investigação estão sendo deixados de lado. Foram naturalmente substituídos por quem vê a lógica como uma deformidade neurológica. O lado psicológico está dando novos rumos à ineficiência de nossos médicos (nem todos, só 80%). É até engraçado diagnosticar uma doença não detectada com outra. Como a medicina mudou e ficou fácil de ser praticada depois de oficializado o politicamente correto. “Estado psicológico”. Tudo é naturalmente psicológico. E assim vamos levando, acho até que a grande maioria dos médicos acham que o juramento de Hipócrates não passa de uma sandice. Ele (Hipócrates) deveria estar num estágio evoluído de depressão quando escreveu aquilo. E os responsáveis por tudo isso lavam as mãos. Por que pelo menos não age como a OAB que só deixa o bacharel começar a profissão depois de conseguir a tão sonhada carteira? Isto evita que muita gente despreparada exerça uma profissão sem saber nada (nem sempre dá certo). É melhor do que deixar que anualmente as faculdades lancem no mercado milhares de jovens sem a mínima condição de exercer as ciências médicas. É isto que leva as massas a se convencerem de que a maioria dos seres humanos sofre de depressão, os que não concordam é porque estão num estágio evoluído deste mal. A depressão é o meio mais fácil para justificar o que grande parte dos médicos não consegue decifrar, algo que vá além do que foi ensinado nos bancos das sucateadas universidades (nem todas). E a indústria do “pavor a tudo” (fabricantes de antidepressivos) agradecem e enriquecem com a “bestialidade médica”. Existem três tipos de médicos: o “semideus”, aquele que enxerga o paciente como uma “coisa” que pode ou não dar lucro. Tem o médico verdadeiro, aquele que vê o paciente como um ser humano igual a ele e exerce a medicina como um sacerdócio, chegam a dar bom dia, boa noite, o paciente até relaxa. Tem também o truculento (ou cavalo batizado, como queira): já recebe o cidadão com cara fechada e dando bronca, o paciente fica se achando o último dos últimos. Parece até que não saber explicar o que está sentindo é um delito grave. Mas enquanto os “semideuses” vão ganhando espaço com seus erros e acertos, a causa psicológica vem se tornando cada vez mais natural. E aí morre gente diariamente… Será que a morte também é um estado psicológico? Nossos “médicos”, com raras exceções, já escolhem esta profissão esperando dias melhores, não passam por nenhuma avaliação antes de ingressarem no mercado de trabalho. O treinamento é feito nos pacientes do SUS, isto é um absurdo. E ainda tem o agravante da ética médica, os erros médicos só veem a público quando denunciados por familiares de pacientes mais bem informados e raramente são apurados, pois a maioria é questão “psicológica” dos parentes “deprimidos” pela perda de um ente querido. E o finado provavelmente morreu por não acreditar que o que tinha era psicológico. Ainda bem que inventaram o raio X, caso contrário fratura só seria levada a sério se fosse exposta. Sorte nossa que os odontólogos (dentistas) ainda não aderiram ao “estado psicológico”. Já imaginou? Enquanto isso, nós continuamos nos lascando em mãos erradas. Temos que ter a sorte de cair nas mãos de médicos que praticam a verdadeira medicina. Coisa rara, muito rara. Mas Deus não iria nos deixar tão desprotegidos, são raros, mas ainda existem aqueles que podemos chamar de médicos.
E enterraram o pé esquerdo de João Carne Seca com chuteira e tudo debaixo de um pé de jaca do campo das “sete casa”. Foi triste, até a filarmônica tocou o hino da cidade no dia… Dona Cotinha, mãe do atleta, uma santa que sempre se conformou com tudo, chegou a comentar com a nora: “Pelo menos ele se livrou daquele calo seco”.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

JEREMIAS MACÁRIO - CRÔNICA

TRISTE SINA DO SÍMBOLO NORDESTINO
Jeremias Macário  

 No sol escaldante, na chuva ou na lama com sua cangalha,lá estava ele com meu pai transportando mandioca da roça para o processamento, sacos de farinha, feijão e milho para as feiras da cidade de Piritiba e o distrito de Andaraí. Eu ainda era menino e, mesmo assim, nós três éramos colegas inseparáveis de trabalho. Poucas vezes reclamava do peso e do cansaço, só era meio atrevido e, às vezes, fujão.
Nunca imaginava na triste sina da sua raça, de que um dia seria abatido em frigoríficos da Bahia e do Nordeste, e que seu escalpo e sua carne seriam vendidos para os chineses. Sua pele é aproveitada para produção de um tal Ejiao, uma gelatina usada na medicina e em cosméticos chineses, que movimentou o equivalente a 22 bilhões de reais em 2018. A carne, de acordo com reportagem de Alexandre Guzanshe, produzida pela WideAvenues em parceria com a Repórter Brasil (Joana Suarez), é um subproduto consumido no norte da China.
DESENVOLVIMENTISTA”
Triste sina do nosso jumento, do jegue ou asno da espécie asinina, trazido para o Brasil pelos portugueses há 500 anos, e que se adaptou muito bem no semiárido nordestino, sendo o sustento e o braço forte do catingueiro e do sertanejo, principalmente nos tempos mais difíceis das secas, bem antes do aparecimento do ronco dos “gafanhotos motorizados” (as motos) que tomaram conta das cidades, das estradas e veredas da zona rural.
  Esse símbolo nordestino, que está em extinção, é personagem histórica do Novo Testamento na travessia da Família Sagrada pelo deserto da Palestina ao Egito, para salvar o menino Jesus de uma perseguição. Aqui no Brasil, foi tema do filme “O Pagador de Promessa”, premiado no Festival de Canes na década de 60. O “Zé do Burro” fez de tudo e foi humilhado para pagar a sua promessa que fez à santa que salvou seu jumento de um raio.
O nosso jegue de carga, ou o nosso colega, morreu de velho, naturalmente, no pasto, mas não foi para o abate como era o destino de muitos que pereceram cruelmente num frigorífico lá em Senhor do Bonfim, na Bahia, há mais de 50 anos. Portanto, a prática da matança não é de hoje.
 Lembro que meu pai escorraçou um sujeito malvado atravessador que queria levar o mano de trabalho para o escalpo macabro. “O meu morre no pasto, seu cabra assassino de jumentos” – bradou o meu pai, com muita raiva e revolta.  “Isto é o fim do mundo”
O símbolo do trabalho pesado no interior nordestino é “o maior desenvolvimentistas do sertão” – assim cantou o rei do Baião, Luiz Gonzaga. Como narra a reportagem, financiada por uma bolsa da The DonkeySanctuary, uma Ong britânica dedicada a promover o bem-estar dos jumentos, eles são populares na região do sisal (Cansanção, Euclides da Cunha, Serrinha e Valente). Foram eles os responsáveis por transformar Valente em capital do sisal. Eles carregam a folhas até a máquina de processamento, e dali até o varal onde os fios secam.
Estão também ajudando o homem do campo na labuta de outras culturas de subsistência, como da mandioca, do feijão, do milho e da mamona, O professor de veterinária da USP, Adroaldo José Zanella está tentando implementar estratégias de bem-estar dos jegues. Ele acha que um animal que está aqui há 500 anos não pode acabar em cinco.
UM ACORDO ESQUISITO E OS ATRAVESSADORES
  A China não atende sozinha a demanda de criar 10 milhões de jumentos por ano para o abate, por isso importa esses animais de países da África e da América do Sul, principalmente o Brasil, num acordo esquisito. Aqui não tem nenhuma estrutura para aumentar a produção, e o destino do jegue é se acabar em pouco tempo.
Existe um “faroeste” na cadeia de atravessadores de asininos no Nordeste para o mercado chinês, conforme constatou a reportagem de Alexandre e da Repórter Brasil. Eles percorreram quase três mil quilômetros no sudoeste da Bahia e só avistaram 15 jumentos. Milhares estão sendo submetidos a condições degradantes e abatidos nos frigoríficos de Simões Filho (Cabra Forte), Amargosa (Frinordeste) e Itapetinga (Frigorífico Regional Sudoeste).Devido aos maus tratos houve uma liminar judicial proibindo o abate, mas retornaram às atividades.
O interesse dos estrangeiros pelo negócio foi uma surpresa até para as autoridades brasileiras numa viagem à Ásia em 2015. Os chineses querem um milhão de jumentos por ano. Não existe uma contabilidade precisa, mas o IBGE estimou, em 2012,um contingente de cerca de 900 mil animais, sendo 97% no Nordeste. Em julho de 2017, a Bahia começou a exportar carne e couro para a China, com a meta de enviar 200 mil unidades por ano.
AleandreGuanshe conta que parte da Fazenda Santa Isabel, em Euclides da Cunha foi arrendada pelos chineses. Em pouco mais de um ano, mais de 100 mil jumentos foram mortosnos três frigoríficos da Bahia, mas existem abatedouros em outros etados.A redução drástica ocorre porque sua cadeia é extrativista. Além de não existir normas de criação, não há fiscalização do transporte, nem contagem mais recente da sua população.
 A reportagem apontou seis atravessadores, como o sertanejo que vende o animal solto ou do quintal por 20 e até 50 reais, ou doa; o pequeno comerciante que junta um grupo de jegues para revende-los a transportadores ou fazendeiros por até 100 reais a estrangeiros (na feira vale até 300);  transportadores que levam o jumento até as fazendas baianas habilitadas (o abete se intensificou em 2017, e muitas propriedades se cadastraram na Adab –Agência de Defesa Agropecuária da Bahia); caminhoneiros que recebem em média 240 reais por animal abatido; e companhias de logística do Vietnã e Hong Kong que compram a carga de frigoríficos por 300 e 400 reais cada animal. Segundo informações apuradas, as cargas chegam aos portos asiáticos por contrabando.
ENTREPOSTOS
 Essas fazendas funcionam como entrepostos para animais trazidos de municípios baianos e de outros estados do Nordeste. Para trafegar, o motorista precisa da Guia de Trânsito Animal (GTA). Na prática, a maioria viaja sem a permissão, trafegando à noite através de desvios. Uma dessas fazendas habilitadas é a de Herynaldo Marinho, em Teofilândia, que está entre as 12 fornecedoras para o frigorífico Cabra Forte, em Simões Filho. Outra é a fazenda Piedade que apenas abriga os animais, com documento forjado.
Na China uma peça de pele de jumento é comprada por até quatro mil dólares (16 mil reais), enquanto uma caixa de Ejiao custa entre 186 a 750 dólares. De acordo com cálculos aproximados, o comércio de jumentos gerou em pouco mais de um ano uma receita bruta em torno de 45 milhões de reais aos frigoríficos da Bahia (últimos atravessadores brasileiros).
BRINDE E MAUS TRATOS
  Para Sônia Martins Teodoro, representante da Ong Animais de Itapetinga, os jumentos estão indo de brinde para os chineses que importam do Brasil grandes quantidades de bovinos rendendo bilhões de dólares. Segundo ela, o acordo foi um agrado do governo brasileiro para atrair investimentos.
Itapetinga, na Bahia, foi o município que mais protagonizou as cenas de maus tratos em 2018. Numa fazenda, mais de 800 jegues viviam caídos ao solo, com fome e sede, e outros 200 foram encontrados mortos. Houve manifestações contra as matanças, inclusive no Farol da Barra, em Salvador. “Era uma coisa terrível, nunca vista aqui” – comentou na época o delegado de Itapetinga, Irineu Andrade, que indiciou os responsáveis por crimes de maus trato e poluição do rio. Dias depois, outra fazenda foi interdita, e em Euclides da Cunha surgiram mais denúncias contra a fazenda Santa Isabel.
Em novembro de 2018, a Justiça da Bahia proibiu o abate, mas uma pressão empresarial derrubou a liminar,e em setembro do ano passado os frigoríficos foram liberados a voltaram às suas atividades. O Ministério da Agricultura mostrou-se contra a proibição do abate, por se tratar de uma alternativa econômica. A Frente Nacional de Defesa dos Jumentos vem se mobiliando para combater os maus tratos, e cuida de 200 animais sobreviventes para serem doados a reservas ecológicas.

domingo, 5 de janeiro de 2020

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

DEUSINETE DO PÊNALTI (FICÇÃO)
Nando da Costa Lima~
            Seu Leôncio ainda tinha a marinete...
Tava na cara que ia ser uma partida de lascar, as duas cidades há muito vinham esperando este confronto. A seleção de Ibicuí contra o Iguaí Futebol Clube, o time mais forte das redondezas! Já tinham surrado até a seleção de Poções, um timaço! O jogo foi em Nova Canaã, que era território neutro. O campo nunca esteve tão cheio, tinha mais de trezentas pessoas, fora os meninos e as filhas do tenente Ló que assistiram o jogo dentro da rural pra evitar falatório, as três estavam grávidas do mesmo safado. Como ele não podia casar com as três, o tenente matou o safado, ficava mais fácil para as meninas explicar que eram viúvas.
      Celsão, que já jogou até no Botafogo, foi emprestado por Belo Campo para a seleção de Ibicuí, falou que ia marcar dez “gorro” pra cada namorada, três moças desmaiaram na hora! Juca Pranchão, atacante do Iguaí, exibia a chuteira feita especialmente para aquele jogo, tinha 32 birros em cada pé, todos travados com um prego! Antes de começar o jogo, o vereador Heleno de Zinha fez um discurso, prometeu um jogo de camisa e uma caixa da legítima Jurubeba Leão do Norte pro time ganhador, cantou o hino nacional, e quando tentou recomeçar o discurso, o juiz, que era da oposição, mandou ele ir fazer política “nos inferno” e começou a partida. O primeiro tempo correu agitado, Teobaldo foi expulso por dar um soco no bandeirinha e este foi substituído por João Açougueiro. Celsão tava num dia de inspiração, já tinha feito três gols do meio do campo, e aquele campo era bem maior que um campo oficial, um goleiro só via o outro se aproximasse a vista, e só via a cabeça porque tinha uma ondulação no meio do campo. Juca Pranchão não deixou por menos, além de esfolar a canela da zaga do Ibicuí, empatou o jogo marcando os quatro do seu time, todos com aquela canhota que todos já conheciam, quando caía na canhota de Juca o goleiro tremia. Era a Canhota de Ouro de Iguaí, já tinha ganhado 6 pares de sapato motinha como melhor jogador do ano e pelo visto ia ser eleito mais uma vez. Chico, um comentarista de futebol aqui do planalto conquistense, que não ia com a cara de Juca só porque o goleador era mais conhecido do que ele, disse uma frase que até hoje não consegui decifrar o que ele quis falar com aquilo: “SE NOME GANHASSE JOGO O DICIONÁRIO NÃO PERDIA UMA PARTIDA”. Sua noiva Deusinete, presente em todos os jogos, era tida como o talismã do time, era só piscar o olho pra Juca e jogar um beijo que a canhota comia solta, era gol certo! Também, um rabão daquele deixava qualquer um inspirado.
       No segundo tempo foi que aconteceu a tragédia, aos 44 minutos, o jogo duríssimo, um placar de 16x16, Celsão meteu uma chapa na canela de Juca que além de rasgar o meião deixou os birros desenhados, não ficou um fio de cabelo! Pênalti claríssimo marcado pelo juiz Zé de Daza, que só marcou porque tinha tomado uma! A torcida de Iguaí gritou em coro: “Deixa pra canhota de Juca Pranchão”. Ele atendeu ao pedido e correu pra marca do pênalti com a bola debaixo do braço e tentando localizar Deusinete, seu amor e amuleto da sorte! A torcida fez questão de colocá-la de frente pra Juca. Quando o juiz autorizou, Juca correu pra bola e deu uma paradinha, nesse exato momento Deusinete piscou o olho, jogou um beijo e inovou o gesto com uma declaração aos berros: “Ai love você”. Ele bateu na bola com tanta violência que derrubou o varal de roupa de dona Ana e saiu carregando uma samba canção do tamanho de um lençol de casal, foi cair no açude de João Bigode. O homem parecia que tava cego, a bola passou tão longe do gol que quase mata um urubu em pleno voo. O vexame foi total! Pra piorar, Juca partiu pra cima da noiva dando tapas, chutes e gritando: “Ai love você um caralho”, enquanto a torcida incentivava: “mata essa vaca agourenta no pau”, “corta a língua dessa égua metida a americana”.
       Com Juca expulso, Celsão em menos de um minuto fez mais dois gols do meio do campo e definiu o placar para a seleção de Ibicuí. E Deusinte entrou em baixa, além de perder o noivo, ficou encalhada, ninguém queria pegar a urucubaca. Tudo por causa de um pênalti perdido! Hoje, Deusinete do pênalti, apelido que herdou depois do ocorrido, mora em Conquista... Talvez seja até por isso que o futebol conquistense nunca conseguiu ser campeão baiano.

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