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sábado, 30 de novembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

Eles cortaram volta

Nando da Costa Lima
A Coluna Prestes passou pela Bahia nos anos 1925/26. Mesmo tendo perdido prestígio com o tempo, ainda eram vistos por muitos como heróis. Também surgiram várias lendas depreciando ou elogiando o movimento militar surgido em 1925. O levante só durou dois anos, e a Coluna percorreu mais de vinte mil quilômetros. Quando a situação foi contornada, os militares voltaram pros quartéis, mas ficaram os bandos de civis armados vagando pelos sertões dos conturbados anos 20. Muita coisa errada aconteceu por causa disso. A revolta foi uma insatisfação militar contra o governo federal, nessa época Prestes não tinha ligação nenhuma com o comunismo…
O encontro estava tenso. Os homens de bem da cidade estavam reunidos para discutir o que fazer caso os revoltosos passassem pela cidade. Era a terceira reunião dos coronéis em menos de 10 dias. Não se chegava a um acordo, não sabiam se iriam receber a Coluna como amigos ou inimigos. Tinham que arranjar um jeito de respeitar o governo, que eram contra aquela “marcha de gente sem o que fazer”. Mas também sabiam que se os revoltosos entrassem na cidade, iriam saquear e soltar os presos. Isso sem falar nas mulheres. Se eles tentassem, o jeito seria recebê-los à bala. Sò que os revoltosos eram um número bem maior, seria uma carnificina. E os coronéis do Planalto estavam bem armados.
As senhoras dos coronéis já tinham uma solução para o problema: elas haviam decidido que colocariam olheiros nos pontos mais altos da serra e nas principais entradas da cidade. Caso o vigilantes vissem ou ouvissem alguma coisa, desceriam e avisariam pros coronéis, que subiriam em comitiva e fora da cidade negociariam uma solução. Perguntariam aos chefes da Coluna quais eram as suas necessidades e se prontificariam a fornecer o que fosse necessário sem que houvesse hostilidade com o povo da cidade. Quando elas mandaram os maridos levarem essa ideia pra última reunião, todos concordaram. Deve ter sido Nossa Senhora das Vitórias que clareou. Os coronéis começaram a pôr o plano em ação de imediato: escolheram os rapazes mais fortes da cidade, os atletas da época, e os distribuíram nos pontos mais altos da serra. Cada um ficaria com uma montaria arriada, para não perderem tempo caso ocorresse alguma suspeita. Se acontecesse, a comitiva subiria para a serra, já estava tudo acertado entre os coronéis. Uns dariam dinheiro, outros gado, outros mantimentos. Fariam uma proposta bem chamativa, não queriam confusão, já que um bando de homens armados passando por dentro de uma cidade ordeira não ia terminar bem. O dono do bar exagerou um pouco quando disse que seria um massacre, mas ele tinha suas razões. Tinha uma família grande e bonita pensou até em mandá-los pro Simão, mas não adiantava: ninguém sabia por onde os revoltosos viriam. Ele estava tão preocupado que prometeu um barril de 50 litros de pinga e um saco da legítima Jurubeba Leão do Norte (nessa época era vendida em sacos de estopa, as 36 garrafas eram revestidas com palha). Aquela atitude causou admiração, Seu Duda não era de abrir a mão por nada, deve ter sido o medo de algum revoltoso se engraçar com Marivone. É nisso que dá casar com mulher bonita! Os coronéis escolheram Ivo pra ficar no Cruzeiro, era a passagem mais provável. Se os revoltosos viessem, com certeza seria por ali. Ivo era um atleta natural, praquela época um homem com 1,90m e forte se destacava em qualquer canto. Além disso, ele jogava futebol, praticava boxe, nadava… Era o homem certo. Daí o motivo de os coronéis o colocarem no ponto mais estratégico da Serra do Periperi. Ele era um grande corredor e tinha muita resistência. Quis até dispensar a montaria, mas os coronéis fizeram questão de deixar uma bom cavalo à disposição do olheiro atleta. Era uma questão de sobrevivência da
cidade, ninguém podia vacilar! As mulheres pediram aos coronéis para colocarem um jagunço no lugar de Ivo, ele era o único professor de educação física da cidade. Mas os coronéis sabiam que um jagunço não seria de total confiança, afinal, ele iria se encontrar com gente como ele, seria fácil ele se identificar com a Coluna. Tinha que ser Ivo, um jovem em que todos confiavam. Ele daria conta do recado. Dona Rosálio tava estranhando. Se a Coluna não tinha passado nem em Jequié nem em Poções, como é que estariam chegando aqui? Isso devia ser conversa fiada. Dona Turmalinda completou: “Pro lado do Verruga, também ninguém ouviu falar em revoltoso”. Ivo estava cochilando no ponto de vigília que lhe deixaram com um binóculo e uma montaria pra ele dar notícia de qualquer movimento suspeito… Mas o cochilo de Ivo tava pesado e ele deve ter sonhado com uma invasão dos revoltosos. Acordou com um grito agudo: “Te apruma, revoltoso”. Ivo nem olhou pra trás, nem se lembrou do cavalo, desceu a ladeira numa carreira alucinada. Por onde passava, arrebatava dois ou três curiosos. Quando chegou na casa do coronel que chefiava a comitiva, apontou pra serra e gritou: “Revoltosos!”. O coronel, mesmo desconfiado, escalou o resto da comitiva e subiu a serra a galope. Ivo já tinha cumprido seu papel, ficou sendo abanado e tomando garapa de cana pra recuperar. Já era um herói!
Quando os coronéis chegaram no local indicado pelo atleta, deram de cara com o tropeiro Dão Bilhete vindo com sua tropa de quarenta burros carregados de artigos oriundos da capital pra vender em Conquista na última feira antes do Natal. Os coronéis perguntaram pra ele se tinha visto algum movimento de revoltosos pelo caminho da capital pra cá. Ele relatou que a Coluna foi pro lado de Condeúba e Mortugaba, mas que agora já estava longe, e brincou: “O único rebelde que tem aqui é o meu burro, que batizei de Revoltoso”. Dão ainda contou que a Coluna pegou o povo de Condeúba de surpresa, mas em Mortugaba a coisa foi diferente, o pessoal já esperava e deu as caras. A briga foi feia.
A comitiva desceu a serra bem mais calma só de saber que a Coluna já estava longe. Fizeram uma reunião extraordinária na parte de cima da igreja e comunicaram à população que os revoltosos cortaram volta, passaram por Condeúba. Alguém devia ter falado pra eles que a coisa aqui era diferente…Tá pensando o quê?! Livraram a cara do atleta herói, nem contaram que a carreira que ele deu do Cruzeiro até o Centro foi por conta do tropeiro Dão Biilhete ter chamado o burro que lhe servia de montaria no grito: “Te apruma, Revoltoso!”…
Ivo fez uma compra vultosa na mão de Dão Bilhete, deixou até uma gorjeta gorda. Mas Seu Dão já tinha garantido que ninguém ia ficar sabendo da ocorrência no alto da Serra do Periperi. Até o nome do burro ele já tinha mudado pra Bentivi.

sábado, 23 de novembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

Diplomacia

Nando da Costa Lima
Panela de barro, fogão a lenha, cortado de maxixe com carne seca… O cheiro da comida de Alvina tomou conta da Rua Grande. Era dia de feira, tinha gente de todo o canto, o barracão tava que não cabia mais ninguém. Tinha bêbado, tinha pedinte, tinha de tudo que uma feira exige. Até ladrão! Um vendedor de passarinho tava querendo que um soldado comprasse uma araponga já mansa. Segundo ele, o negócio não deu certo: o soldado estava bêbado e quebrou a gaiola toda, o passarinho aproveitou para ser livre novamente e o vendedor foi recolhido por afronta a autoridade. Foi engaiolado no lugar do passarinho. Dona Nita do arroz-doce gostou de ver, “É praquele amarelo parar de armar arapuca pra pegar os bichinhos…”. Por que, em vez disso, ele não catava lenha? Tinha quem comprasse! Mas não, o sacana do Bertulino só queria saber de passarinho. Era uma profissão como outra qualquer, só que quem a exercia ficava mal visto, era coisa de gente preguiçosa. E quanto mais quando se tratava dos Araponga, o pai de Bertulino ficou famoso depois que ensinou um papagaio a falar “Aldagisa filha da puta” e deu de presente pro vizinho da avó. A velha não podia mexer na cama que o sacana do louro começava a assoviar e xingar. O Dr. falou que Dona Aldagisa infartou de tanto passar raiva. Coitada. Mas Bertulino não abria mão da profissão, ele vinha de uma linhagem de passarinheiros que há muito tempo comercializava arapongas, tanto é que todos da família assinavam o nome da ave como sobrenome. Bertulino Araponga era da quarta geração. Mas era comum os feirantes adotarem o nome do produto que vendiam: era João do Fumo, Zé do Bode, Maria do Andú… O pirão de rabada da barraca de Zenilda era famoso, vinha gente de fora só pra provar. Todo mundo sabia quem era Zenilda do pirão.
Foi numa barraca que só vendia fumo de rolo e pinga (E é claro que rolava um joguinho apostado). Foi ali que um jogador, já meio tomado, começou a falar sobre uma surra que ele tinha dado num professor a mando de seus próprios aliados. A história contradizia toda a versão conhecida pelos demais. Apesar de terem certeza de que era mentira, eles insistiram que Emergildo de Duda contasse a versão da surra que um professor e poeta tinha tomado no início do século, o que atiçou a curiosidade do pessoal. A surpresa foi quando ele disse que foram os próprios aliados: todo mundo sabia que quem encomendou a surra foi o outro lado. É que se fosse pra decidir só com o pessoal daqui, o lado do juiz ganhava. Eles tinham que convencer o coronel em Macarani, pra entrar pro lado deles. Mas a disputa era entre parentes, e este não queria se meter na briga dos primos. A forma achada foi essa: o coronel tinha sido aluno do professor poeta e tinha um respeito muito grande pelo mestre. Era claro que quando soubesse que o seu professor tinha sido espancado por um dos lados ele tomaria partido do pessoal que tinha o professor como um de seus líderes. Essa decisão foi fundamental.
— Não se sabe quem, mas eu garanto que quem contratou era gente do mesmo lado. Eu sei porque eu ajudei a dar a surra, foi fácil… O poeta nem pôde reagir. Seu amigo, então, nem teve tempo de descer do cavalo. Morreu lá mesmo.
Aí uma senhora conhecida do poeta que estava passando pelo local, ao escutar a conversa, retrucou:
— Agora que o povo tá em paz, já nem se fala mais em briga, você vem com essa mentira, seu cachaceiro. Daqui a pouco você vai falar que foi papai que mandou bater no professor Manoel. Cê tá lembrando da tropa que sumiu com os animais arreados? Imagina você que só anda só, é tão miserável que nem amigo tem.
— Se a senhora tá me ameaçando, é melhor mandar seu marido tomar frente na briga. Meu negócio com mulher é só na cama. E tem que ser bonita!
— Não foi isso que Marluce falou. Ela tá decepcionada. Foi enganada. Viu alguém te chamando de jumento e pensou que era fazendo alusão. Casou com você e até hoje reclama da falta de atividade sua. Foi propaganda enganosa.
— A senhora agora quer se meter até na minha vida particular. Também, Marluce fica dando ousadia pra qualquer uma.
— Qualquer uma é a senhora sua mãe. E isso nem é segredo aqui, seu linguarudo. Quer mudar a história da cidade? Filho de jagunço, neto de jagunço… Quem é que vai acreditar? Além do mais, tem muita gente que se ficar sabendo dessa sua mentira vai fazer fila pra te mandar pro inferno na hora. É melhor você calar essa boca antes que eu costure com agulha de sapateiro.
— No dia em que uma mulher me fizer calar a boca, eu mudo de cidade ou visto uma saia.
— Então acho bom cê picar o burro antes da feira acabar. Se ficar, eu não me responsabilizo. Palavra de Belinha, e eu não tô aqui pra ver homem de saia.
          Quando Emergildo escutou o nome “Belinha”, gelou da cabeça ao dedão do pé. Só deu tempo de ajoelhar, e gaguejando tentou se explicar:
— Perdão, Dona Belinha. Eu inventei essa história pra ver se causava alguma sensação, a feira tava muito sem graça, não tinha um fuxico rodando… Foi por isso que eu fiz essa besteira. Pelo amor de Nossa Senhora, esquece isso
— Mas agora você já falou. Então é bom picar a mula, ainda dá tempo, a feira mal começou.
— Tá bom, Dona Belinha. Meu nome é Emergildo, eu sou filho de Dona Duda, ela mora na passagem pra fazenda da senhora. Fale pra mãe que eu fui em direção à guarita de Minas e que de lá vou pra Sompaulo, não tem tempo pra voltar… Sua bênção, Dona Belinha.
— Deus te abençoe. Cria juízo e esquece de voltar. Pode deixar que eu falo pra sua mãe que foi melhor você viajar do que ficar plantado aqui.
          E graças à diplomacia, correu tudo bem na feira da Rua Grande… Só Bertulino Araponga foi preso por se desentender com uma autoridade.

sábado, 9 de novembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

CUSTÓDIO PÉ DE VALSA 
Nando da Costa Lima
Custódio era mais arrogante do que ministro do STF, mas quando bebia, perdia a noção de tudo... Ele parou o carro em frente a uma cancela, estava completamente bêbado, tava de bater de lenço... Tentou abrir, mas viu que estava com um cadeado enorme. Foi o jeito pular, mesmo estando vesgo de pinga. Conseguiu cair do outro lado e do chão sentiu que vinha alguém ao seu encontro. Era um senhor de uns 70 anos, com barba e cabelos grisalhos. Ele acenou pro biriteiro e, apontando pro casarão, o convidou para tomar um café. Custódio ficou de pé, sacudiu a poeira, agradeceu o convite e acompanhou o velho até a residência. Lá a casa parecia que estava em festa, tinha muita gente! Todos foram muito simpáticos, parecia que todos eram parentes dele. Pela cordialidade, Custódio se sentiu em casa, só tinha gente boa! Um dos presentes notou que ele estava enrolando com aquela xícara de café com leite e ofereceu uma pinga. Ele aceitou sorrindo, viu que ali era o lugar certo pra terminar aquela farra. Ficou tão alegre que esqueceu do tempo, nem pensava em sair dali, tava muito satisfeito. Dançou, comeu e, principalmente, bebeu. Conversou sobre vários temas com os presentes, só não ficou mais à vontade porque notou que só quem não estava armado eram os meninos. Mas pelo tratamento a ele dispensado, pegava até mal perguntar o motivo de tantas armas. Parecia que iam pra guerra! O pessoal lhe tratou tão bem que ele não tinha planos de ir embora tão cedo. Até uma possível namorada ele já tinha arranjado, era uma questão de tempo. Antes da meia-noite ele já estava tropeçando no povo, mas tinha certeza de que ia se dar bem com aquela morena. A dona da casa entrou na sala e disse em voz alta que o jantar estava sendo servido. Um verdadeiro banquete! Tinha de tudo: peru, pato, galinha, bode e, para a alegria de Custódio, muita bebida. A comilança correu muito bem, teve até discurso saudando o visitante. E ele, emocionado, retribuiu elogiando a todos os presentes. Falou que nunca tinha sido tão bem tratado em sua vida, nem na casa de parentes ele tinha sido tão mimado, toda hora passava alguém oferecendo alguma coisa. Tudo ficou ainda melhor quando um dos convidados apareceu com uma sanfona e sentou o dedo pra dentro, tocou mais de vinte músicas seguidas. E Custódio, a cada parte, mudava de par. Era um exímio dançarino, até a matriarca fez questão de dançar uma valsa com o galanteador que surgiu do nada. Ele começou a imaginar por que não tinha conhecido aquele pessoal simpático há mais tempo, eram praticamente vizinhos. De Conquista pra lá era um pulo, não entendia o porquê de nunca ter encontrado com aquelas pessoas. Só podia ser coisa dos primos invejosos, ficaram com receio de ele ficar mais amigo do casarão que deles. Isto o deixou tão curioso que começou a interrogar a todos disfarçadamente... Mas quanto mais indagava, mais o pessoal o deixava em suspense. Ninguém tinha ouvido falar dos seus primos ou dos vizinhos. Ninguém dava uma resposta que clareasse suas dúvidas. Como cavalo dado não se olha os dentes, ele sossegou e continuou na farra, que estava muito boa. Quando deu meia-noite, o velho que, segundo ele, era o dono da casa, chamou Custódio num canto reservado e falou que tinha gostado muito de sua companhia, mas que infelizmente já estava na hora de ele ir embora, tava na hora de dormir. Quando o velho acabou de falar, começou a trovejar forte, e em questão de minutos caiu um temporal com muito vento. Pareceu que as janelas do casarão trancaram de vez, era água e vento como há muito tempo não se via. Os raios tornavam o temporal ainda mais ameaçador, e Custódio, apesar de ter pavor de raio, até que gostou. O dono da casa teria que hospedá-lo de qualquer jeito, nenhum ser humano deixaria um visitante sair num temporal daqueles, seria maldade! E era mesmo: deixar um bebum sair dirigindo debaixo daquele aguaceiro era sacanagem das grossas. Mesmo assim, o dono da casa tornou a chama-lo e quase que insistiu que ele fosse embora. Quando ele viu que o povo tava falando sério, ficou receoso. Mesmo assim, insistiu, pedindo a uma das moças pra convencer os velhos a deixarem ele pernoitar no casarão. Mas não teve acordo, o povo tinha falado sério, e ele sem entender nada insistiu mais uma vez, argumentou que não ia incomodar, era só abrir a cancela, colocar o carro pra dentro e passar a noite. Assim que a chuva passasse ele iria embora. Insistiu tanto que foi o jeito abrirem a cancela e o deixarem dormir no automóvel. Antes de encostar o carro em frente ao casarão, Custódio já estava cochilando, mas fez questão de descer e se despedir de todos. Depois de muitos agradecimentos e apertos de mão, voltou para o carro e dormiu. E como dormiu... Assustou com seus pais batendo no vidro do carro pra lhe acordar, a mãe estava desesperada. E quando ele baixou o vidro, ainda meio tonto, ela foi logo lendo o beabá pro bebum: — Você tá ficando doido, meu filho? Eu fiquei sabendo lá em Conquista que você ficou um dia e uma noite dançando e conversando sozinho aqui nesse cemitério. Não tem respeito nem com os mortos! Ainda bem que o povo pensou que você fosse doido e não lhe quebrou na porrada... Já imaginou?! Estacionar o carro no meio de um cemitério secular e passar a noite dançando e falando sozinho. Toma uma tenência na vida! E como é que você abriu aquele cadeado enferrujado? Depois disso, Custódio nunca mais foi o mesmo. É que de tanto ele insistir com a história dum casarão que não existia há mais de um século, os parentes acabaram lhe internando em Barbacena, onde permaneceu por um ano e, toda vez que sumia, a família já sabia que iriam encontra-lo em algum cemitério, dançando e conversando sozinho. Custódio Pé de Valsa ficou sendo o doido oficial da cidade até sua morte.

sábado, 2 de novembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO HISTÓRICO

A TRAGÉDIA DO TAMANDUÁ (1895)
     Nando da Costa Lima
Foi tiro pra todo lado, o pipocar das balas chegava a ferir a consciência de quem estava a léguas de distância...
       Foi num tempo onde os coronéis usavam os clavinotes para a lei conforme suas ideologias, um mal necessário para as comunidades perdidas nos sertões, sem eles a lei do mais forte prevaleceria de maneira mais acentuada. Com o poder concentrado nas mãos tornavam-se verdadeiros reis medievais e nada ocorria nas suas regiões de origem sem suas aprovações, isto é, quase nada. Quando a briga era entre famílias que os apoiavam eles simplesmente assistiam, aí a razão não tinha lado...
        O desentendimento começou depois que uma vaca do coronel foi encontrada morta, na fazenda Pau de Espinho que pertencia à viúva Lourença de Oliveira Freitas. Afonso Lopes acusou os filhos da viúva de terem matado o animal. Após essa desavença houve uma briga delescom o genro do Coronel, que saiu em desvantagem. Isto deu fim a uma velha amizade, que se não era das mais amáveis também não era hostil. Aconteceu em 1893 na região de Belo Campo... Quando Afonso Lopes brigou com Sérgio, ele ainda não era autoridade no cargo que correspondia ao de subdelegado. Mas quando assumiu não vacilou em usar da autoridade para tirar a limpo suas diferenças com os filhos da viúva, foi como autoridade que tirou a vida dos dois irmãos na presença da mãe e esta sua atitude gerou uma das mais sanguinárias vinganças de família da história do Brasil.
       Dona Lourença amarrou os corpos dos filhos nos dorsos de dois animais e os conduziu por mais de dez léguas, até a entrada do cemitério de Conquista. Lá pronunciou a frase que ecoou por várias décadas na região: “Vocês mataram meus filhos, se quiserem enterrem senão comam”.
       Calixto, um dos filhos da viúva, não disse nada quando viu os irmãos mortos, se retirou do povoado. Pouco tempo depois de sua partida surgiu o boato que ele estava reunindo homens para vingar os irmãos. A família do Coronel Domingos começou a se precaver esperando o revide, foi mais de um ano de tensão... Que Calixto vinha tentar se vingar o Coronel tinha certeza, só não imaginava que ele viria com todo aquele poder de fogo, seus homens vieram dispersados. Calixto chegou às terras do Coronel na madrugada, pela manhã o casarão da fazenda Tamanduá estava cercado. As mulheres e as crianças já haviam saído do cerco sobre a garantia de Calixto que nada aconteceria e o tiroteio com os que ficaram entrincheirados na sede começou... Foi um dia e meio de fogo cerrado, até que resistiram muito tempo, apesar de estarem bem armados, não esperavam uma reação tão bem planejada, eram quase cem homens armados. O Coronel quando viu os recursos de defesa ficarem escassos resolveu se entregar com todos que se encontravam na casa, na esperança de poupar algumas vidas. Mas Calixto estava determinado, quando tomou o casarão, eliminou todas as vinte e duas pessoas da família do Coronel Domingos Ferraz. Inclusive ele e seu genro Afonso Lopes, este último foi decapitado a golpes de foice... Os corpos ficaram expostos no lugar da tragédia, os parentes temiam uma represália a quem fosse enterrá-los. Só depois da interferência de pessoas neutras na briga é que foram sepultados ali mesmo onde tombaram. Do que sobrou do casarão incendiado os anos se incumbiram de demolir.  Calixto saiu da região, seu objetivo já tinha sido alcançado. Dos jagunços trazidos por ele a maioria ficou (outra grande tragédia), supõe-se que teriam sido contratados pelos coronéis da região ainda receosos com o fato. Esta briga entrou pelo tempo e durou até a década de 40 causando muitas mortes, inclusive a do próprio Calixto que morreu numa emboscada num povoado do norte de Minas Gerais. Ainda bem que o tempo, este mago que faz desaparecer as marcas deixadas no espaço, se encarregou de apagar todos os vestígios da rivalidade entre os descendentes dos personagens desta tragédia secular.