DOS SUMÉRIOS A BABEL (IV)
A EPOOEIA DE GUILGAMECH (Final)
Jeremias Macário
Nas duas últimas tabuinhas da escrita
cuneiforme, Utinapistin revela para Guilgamech (Gilgamés) que foi sobrevivente
do Dilúvio de que fala a Bíblia,na personagem de Noé. Na décima tabuinha, o
rei, todo coberto de peles de animais, se apresenta a Siduri-Sabitu, guardiã da
Árvore da Vida, com seu coração cheio de dor. A deusa, então, resolve
trancar-se dentro da sua casa para não recebê-lo.
Gilgamés bate furioso na porta e a senhora
pergunta o porquê da sua longa viagem. Adverte que nunca encontrarás a vida que
procuras. “Quando os deuses criaram os homens, estabeleceram para eles a morte
e guardaram a vida para si”, e aconselha a gozar a vida como ela é, que no fundo
é bela. Insiste ainda que retorne para Uruk onde todos o amam.
O rei não se convence do argumento e continua
a insistir para que ela mostre o caminho para Utinapistin. “Atravessarei o mar,
ou vou caminhando pelo litoral”. Diz a deusa que, a não ser pelo Sol, ninguém
pode navegar pelas Águas da Morte. No momento da discussão, aporta o barqueiro
de Utinapistin que tinha vindo buscar
ervas e frutas no bosque.
Então, Siduri-Sabitu manda que ele vá até ao
barqueiro para ver se ele consente que o leve pelo mar. Gilgamés corre e grita
pelo barqueiro, só que ninguém responde. Com raiva arrebenta várias caixas
cheias de pedras que estavam no barco e termina encontrando o homem chamado
UrChanabi.
Dirige-se a ele e pede que o leve até seu
patrão, mas o barqueiro responde que ficou impossível porque ele destruiu as
caixas de pedras que serviam para ajudar na navegação pelas Águas da Morte.
Para contornar o problema, o barqueiro impôs que o rei cortasse cento e vinte
troncos e os embarcasse no lugar das pedras.
Prontamente Gilgamés fez o trabalho na maior
rapidez possível e os dois puderam velejar pelas ondas turbulentas até às Águas
da Morte. Ur ordena ao passageiro tomar o machado e enfiar os troncos no fundo
do mar, mas adverte que ele poderá morrer se as Águas da Morte tocar em suas
mãos.
De longe, Utinapistin a tudo observa e indaga
a si mesmo o motivo do desaparecimento das caixas de pedras. Por que agora um
estranho, sem a sua permissão, está sem sua barca? Conclui que não pode ser um
mortal. Vai, então, ao encontro do rei e se apresenta como aquele que encontrou
a vida.
Gilgamés fica feliz e começa a contar sobre
sua dor e o sofrimento durante toda travessia, só para lhe conhecer. Vai direto
ao assunto e afirma que quer destruir os espíritos da morte para acabar com o
prazer deles. Como obter a vida eterna? - indaga
Aconselhou que ele deixe de lado os lamentos
e a ira, pois a sorte dos deuses é diversa da dos homens. “Mesmo que tua
natureza seja dois terços divina, teu pai e tua mãe te criaram homem. Um terço
te impele ao Destino dos Homens. A morte põe termo a toda vida. Não são eternas
as casas, os pactos e nem as heranças paternas. Os deuses estabelecem os dias
da vida, mas não contam os da morte”.
Vendo Utinapistin, o rei percebe a mesma
semelhança como homem, só que ele não tem paz e foi criado para lutar. Então
pergunta como seu admirado entrou para a assembleia dos deuses e encontrou a
vida. Nisso, Utinapistin resolve contar-lhe toda história, o segredo dos
deuses.
Diz que Churrupak, a cidade antiquíssima,
sempre foi bendita pelos deuses, mas depois decidiram fazer descer sobre a
terra um dilúvio. No Conselho estava presente Ea (Enqui), deus do Abismo, e ele
confiou à minha casa a sentença dos deuses, exortando a abandonar seus bens,
salvar a vida e construir uma embarcação capaz de carregar a semente da vida de
cada espécie. “Construa rápido o barco e leve-o ao mar de águas doces,
carregando tudo que for necessário”.
Utinapistin narrou como fez a embarcação com
ajuda do seu povo. Quando ficou pronta colocou nela tudo que possuía, prata,
ouro, sua família, os artesãos e sementes da vida. Logo depois os espíritos das
trevas fizeram derramar sobre a terra chuvas torrenciais com tempestades. “Na
aurora ergueram-se nuvens negras como corvos. Os espíritos estavam endiabrados
e a luz se transformou em trevas densas com fortes ventos”.
Contou ainda que as águas revoltas alcançaram
montes, caiando sobre os homens, e até os deuses tiveram medo do furacão e
refugiaram-se sobre a Montanha Celeste de Anu, encolhendo-se como cães
assustados. Ichtar em agonia gritava: O belo país se transformou em lama pelo
meu mau conselho; como pude sugerir tamanha maldade ao ponto de exterminar
minha gente?
No dilúvio, todos os
homens tornaram-se lama. Diz Utinapistin que abriu a janela do barco e a luz
atingiu seu rosto. Vi aquele grande deserto de água e que todos os homens
estavam mortos. Então chorei com lágrimas copiosas. Depois de doze horas duplas
vi despontar no horizonte uma ilha e minha nau encalhou sobre o monte Nissir
durante seis dias.
Como na Bíblia de Noé, descreveu para
Gilgamés que no sétimo dia soltou uma pomba, mas retornou, não encontrando
nenhum lugar para pousar. Então soltou um corvo com águas mais baixas e este
não voltou, o que induzi que encontrou terra para se alimentar.
Diante desse novo cenário, ele deixou que os
animais saíssem e sacrificou um cordeiro; espargi grãos sobre o topo do monte e
queimei alguns ramos de cedro e mirto. Os deuses se encheram de prazeres e
reuniram-se em torno do sacrifício como moscas, reprovando Bel por ter
provocado toda aquela devastação.
Na opinião dos deuses,
se Bel queria punir os homens que soltasse sobre a terra leões ferozes,
monstros e provocasse uma carestia, não destruir toda humanidade. No entanto,
Bel não se arrependeu, mas ficou angustiado ao ver a embarcação e indagou: Quem
é o mortal que conseguiu escapar ao seu destino? Ninguém deveria sobreviver ao
seu juízo.
Enqui, então, se dirige
a Utinapistin e sentencia que a partir daquela hora, ele e sua mulher passariam
a ser semelhantes aos deuses, com habitação perto do mar onde Gilgamés os
encontrou. Depois de narrar a história, ele pergunta a Gilgamés que deus teria
piedade de levá-lo para junto dele para encontrar a vida que procura? Em
seguida faz um desafio para que ele fiqueseis dias e seis noites sem fechar os
olhos.
Muito cansado de tudo aquilo, Gilgamés
adormece profundamente. Ao acordar, Utinapistin o lava, veste, restitui-lhe
vigor e manda que Ur o acompanhe. No entanto, com muita pena pelas atribulações
que o herói passou, tendo que voltar de mãos vazias, a mulher de Utinapistin
lhe oferece uma saída: Existe uma planta milagrosa que cresce no fundo do mar
com aspecto de ameixeira. Se conseguir pegá-la e alimentar-se dela encontrarás
a vida e a eterna juventude.
O herói topa enfrentar mais este desafio e
amarra duas grandes pedras às pernas até ao fundo do mar. Encontra a planta e
emerge tendo na mão a flor maravilhosa do mar, e eufórico grita para Ur, o
barqueiro: Eis a planta que dá vida e vou levá-la aos muros de Uruk! Quero que
todos comam dela! Quero também comer e reaver toda força da minha juventude!
Por vinte horas duplas a barca navega até dar
numa praia. Num lago próximo, Gilgamés entra para se refrescar, mas eis que ao
sentir o perfume da planta, uma serpente penetra sorrateiramente na água e a
devora. Mais uma vez, o herói, em pranto, cai em desespero total. Sem opção,
volta a Uruk com o barqueiro a quem dá de presente um pedaço de terra.
Na última tabuinha, já em Uruk, Gilgamés
consulta magos para ver o espírito do seu amigo-irmão Enquidu. Ele que interrogá-lo
sobre o destino dos mortos. O Sumo Sacerdote o adverte: Se queres ir ao reino
dos mortos uses uma veste suja sem banhar-te com óleos perfumados para não
atrair os espíritos malignos. Também, não deves pousar na terra o teu arco,
para não atormentar aqueles que matastes; não deves levar o cetro, para não
repelir os espíritos dos mortos; nem calçar sandálias, para que teus passos
sejam silenciosos.
Como recomendado, o rei dirige-se para o
grande deserto onde se abre o umbral do Reino dos Mortos e na porta dos
Infernos grita furiosamente. Intimidado, o guardião abre a porta. Cumpre-se,
então, o ritual de despojo da indumentária através das sete portas duplas até
que o rei se encontra nu diante de Erechquigal, suplicando que deixe ver
Enquidu.
A deusa ordena que ele retorne para o lugar
de onde veio, dizendo que não pode ver quem está morto. Tristemente, Gilgamés
volta às águas profundas rogando a Enqui que lhe fizesse aparecer a sombra de
Enquidu. Enqui vai até Nergal, deus dos mortos, e faz uma abertura no chão e
conduz para o alto o espírito de Enquidu para falar com seu irmão.
Os heróis se reconhecem, mas têm que ficar à
distância. Gilgamés pede que seu amigo revele a lei da terra dos mortos. Não
posso fazer isso; se te falasse, sentar-te-ias para chorar. Mesmo assim,
Gilgamés insiste, e Enquidu conta a terrível verdade. Vê agora! O amigo que te
alegrava está devorado por vermes como um farrapo! O amigo que tua mão tocou
tornou-se como argila e está cheio de pó. Logo depois, Enquidu desaparece.
Gilgamés volta a Uruk onde o templo da Montanha
Sacra se erguia ao alto. O rei se estende para dormir e a morte o alcançou na
esplêndida sala do seu palácio. Assim termina a linda Epopeia de Gilgamés, um
espetáculo da literatura mundial.
Destaca o autor do livro que a introdução do
episódio do dilúvio universal na Bíblia é muito tardia e data da segunda metade
do século V A.C, mesmo que a tradição hebraica afunda suas raízes num passado
remoto. “Nas compilações anteriores do Gênese, o protagonista que tomará o
posto de Utinapistin com o nome de Noé, figura somente como o inventor do vinho”.