DÍVIDAS POR DÍVIDAS
Nando da Costa Lima
Quando Teotônio chegou a Salvador com três malas de courode
seu recém-lançado livro “Dívidas por Dívidas”, tinha quase certeza que ali as
coisas correriam bem. Os dois primeiros lançamentos haviam fracassado (um em
Pernambuco e o outro na Paraíba), segundo ele, o povo dali estava engatinhando
culturalmente. Neste terceiro lançamento ele resolveu deixar tudo por conta de
um primo, sua obra seria bem melhor representada por um jovem estudante, aquele
trabalho futurista teria bem mais saída sendo apresentado por gente nova.
Deixou os 480 volumes na mão de Miranda e voltou pra Santo Amaro. Ficou
resolvido que assim que os livros fossem vendidos o dinheiro seria enviado.
O estudante se
sentiu nas alturas ao receber aquela incumbência, um escritor deixar sob sua
responsabilidade toda sua obra, ele tinha que caprichar no lançamento! A
primeira tentativa de lançamento foi na escola, não vendeu nenhum, mas
estudante nunca teve dinheiro mesmo! Da segunda vez ele bolou um plano que não
podia falhar, deu um almoço festivo e relançou “Dívidas por Dívidas”. Deu sorte
que uma senhora derramou uma caneca de vinho numa pilha de livro e melou sete,
o marido fez questão de pagar! Depois disso o estudante fez mais quatro
tentativas, lançou até num jogo de futebol entre casados e solteiros, só vendeu
um! Na falta da moeda para tirar cara ou coroa, usaram um livro que foi
pisoteado pelos perdedores. Cansado de fracassar nos lançamentos, resolveu
colocar a obra de Teotônio em exposição nas livrarias, assim ficaria mais
aliviado daquele fardo. Percorreu todas as casas especializadas em livros da
cidade, ninguém quis ficar com nada, a sorte foi que uma grande livraria cujo
dono era muito amigo do seu pai resolveu dar uma força, o rapaz deixou logo os
472 volumes restantes na mão do gerente. Agora era torcer para que o livro
tivesse saída e ir receber o dinheiro, a livraria tinha experiência com esse tipo
de coisa, e mesmo que não vendesse ele tinha se livrado de ficar olhando
praquela pilha de livros todo santo dia!
O tempo ia
passando e nada do livro sair, quando o estudante botava o pé na porta da
livraria os funcionários gritavam em coro “Lá vem o Dívidas por Dívidas”. Com o
tempo ele desistiu de ir, mandava os colegas, mas as respostas eram sempre as
mesmas. “Dívidas por Dívidas” era o maior encalho da história da casa, da
última vez que perguntaram o gerente falou que só tava esperando o dono aparecer
para devolver aquela merda.
Um dia acordou
com uma boa notícia, uma grande livraria da rua Chile tinha pegado fogo, era a
do amigo do seu pai que tinha ficado com os 472 volumes do livro. Não tomou nem
café, correu pro local do incêndio e quando viu que não tinha sobrado nada
deixou correr uma lágrima de alegria pelo rosto, só assim pra ele vender
aquilo! O dono da loja reconheceu o filho do amigo e ficou sensibilizado com a
tristeza do rapaz por ter perdido os livros no incêndio, consolou o rapaz
prometendo pagá-lo o mais rápido possível. O estudante saiu dali direto pro
correio, ia telegrafar para o primo escritor dando a boa notícia que um único
revendedor ficou com os 472livros. Foi pra casa aliviado, tinha resolvido um
problema que tava lhe incomodando, toda semana o primo escrevia perguntando
pela vendagem do livro. Agora era só esperar o pagamento e remeter para Santo
Amaro.
Ele ainda estava
tomando café da manhã na cozinha quando vieram lhe avisar que o dono da
livraria estava na sala à sua espera. Ficou todo contente, o homem teve pressa
de pagar! Mal tinha engolido o café e saiu para receber o
dinheiro tão esperado, mas quando chegou na sala quase morreu de desgosto, o
livreiro tinha ido entregar os 472 volumes intactos de “Dívidas por Dívidas”,
os únicos livros que milagrosamente escaparam do incêndio...
Só depois de
encontrar um exemplar de “Dívidas por Dívidas” com uma dedicatória feita em
1939 e saber de sua história é que vim entender porque aquele médico contador de
causos nunca quis ser escritor.